Arquivo pessoal de Paulo Aureliano da Mata
Entrevista em 15 de março de 2017.
1) COMO UM TRABALHO COMEÇA?
Um trabalho começa como uma figura solitária a olhar a paisagem infinita – tomo a pintura Composição (Figura Só), de Tarsila do Amaral, para iconográfica e metaforicamente localizar-me no meu processo em arte. A paráfrase construída a partir da sentença bradada às autoridades francesas por Gustave Flaubert diante da censura e da polêmica da sua personagem Emma Bovary, “Livro da Mata Sou Eu, Por Mim Mesmo!”, é a definição que utilizo para materializar esse meu modelo metodológico de pesquisa em arte. Não procuro conscientemente como resultado final a produção de obras de arte por si só; o que mais me interessa nesse meu processo artístico é a expectativa de aprender muito. Perpasso, assim, em outros campos do conhecimento humano, muito embora não deixe de desempenhar investigações em arte. Assumo-me, desse modo, como escritor na procura de narrativas híbridas entre ficção e realidade. Torna-se igualmente impossível nessa busca definir onde cada elemento se inicia e se finaliza. É, portanto, um projeto de ascensão nascido no meu corpo, que é conduzido por meus traços biográficos às minhas criações artísticas e finalizado numa transformação pessoal e, possivelmente, coletiva.
2) QUE ARTISTAS OU TEÓRICAS(OS) VOCÊ CONSIDERA IMPORTANTES? POR QUÊ?
Estou empenhado em investigar os universos das artistas Loïe Fuller e Carolee Schneemann, figuras que considero também importantes para esse meu momento.
Embora fosse uma grande celebridade em Paris na transição do século XIX para o XX, Loïe Fuller tornou-se uma figura quase esquecida desde sua morte em 1928. Seu universo é rodeado por “desinformações”, mas a grande quantidade de objetos de arte produzidos durante sua vida e que possuem sua imagem permanece como prova tangível de sua popularidade e fama. O objetivo dessa minha investigação – tanto para a autobiografia dela em português que estou a organizar junto com Tales Frey como para o solo de dança que estou a produzir – é verificar as significantes contribuições que ela realizou no mundo da arte ao deixar um grande legado de beleza e movimento.
Já Carolee Schneemann é um tesouro vivo!!! Visto que vivemos em um mundo-normativo-patriarcal-sexista-machista-falocrático-misógino-androcêntrico, ela continua a ser uma luz ofuscante, um ponto de referência, para aquelXs poucXs artistas e escritorXs que tentam desconstruir as trevas da cultura dominante. É uma artista visionária que nunca se encaixou tão bem dentro de sua época, mas que torna-se tão urgente e necessária para a reflexão do momento atual.
3) O QUE VOCÊ ESTÁ LENDO?
Estou lendo diversos livros por conta da minha dissertação-diário, como Viagem Solitária: Memórias de um Transexual Trinta Anos Depois, de João W. Nery (São Paulo: Leya, 2011); Transfeminismo: Teorias e Práticas, de Jaqueline Gomes de Jesus (org.) (Rio de Janeiro: Metanoia, 2015); Teoria King Kong, de Virginie Despentes (São Paulo: n-1 Edições, 2016); entre outros.
E, paralelamente, estou a ler o livro Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada, de Carolina Maria de Jesus (São Paulo: Ática, 2014).
4) QUE TIPO DE COISA CHAMA SUA ATENÇÃO NO MUNDO?
É difícil responder a essa pergunta, mas, quando a li pela primeira vez, pensei em livros. De certa maneira, sou fascinado por livros, sejam eles empilhados em casa, em bibliotecas ou nas livrarias, editados ou lidos por mim… Certa vez escrevi em uma carta para um hipotético arquiteto Oscar Niemeyer sobre esse universo que chama a minha atenção no mundo: “Escrevi na página 61 de seu livro As Curvas do Tempo: ‘Você já pensou quantos livros existem no mundo, e quantos mundos existem neles? E nem sequer visitaremos um por cento desses lugares…’ Pois, então, estou lendo como você, como quem nada sabe e tudo quer aprender.” Há no livro do Fernando Báez, História Universal da Destruição dos Livros (Lisboa: Texto Editores, 2009), muitas histórias que me entristecem e, ao mesmo tempo, me orgulham, como foi a do destino da Biblioteca Universitária de Sarajevo, que foi bombardeada pelos sérvios mesmo com a sinalização de patrimônio cultural na noite de 25 de agosto de 1992. Grande parte infelizmente se perdeu no incêndio, mas, felizmente, amantes dos livros e bombeiros formaram uma longa corrente humana para salvarem alguns livros. É como o sábio catalão no livro Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, disse: “O mundo estará fodido de vez no dia em que os homens viajarem em primeira classe e a literatura no vagão de carga.” (Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2009, p. 405)
5) O QUE VOCÊ ESTÁ PRODUZINDO AGORA?
Por ora, estou produzindo a parte prática e finalizando a parte teórica da minha dissertação-diário Não É Trava, Nem Traveco! Respeita as (e Não os) Travestis e Transexuais. E É Gisberta, Meu Amor!. Finalizo-a com a exposição “Nome Social”, que incluirá os desdobramentos construídos a partir da reflexão do percurso da obra Eu Gisberta (2015).
Também estou a concluir, juntamente com o meu parceiro de vida, Tales Frey, a organização em português da autobiografia Quinze Anos de Minha Vida, de Loïe Fuller, a qual será publicada pela eRevista Performatus em parceria com editora brasileira NAU, que, em consequência, me fez começar um projeto de dança chamado E Eu também sou Loïe Fuller!.
Ainda estou a organizar e “curar” a Mostra Performatus #2, também com o Tales, para acontecer entre os dias 01 a 09 de julho desse ano no SESC Santos, onde iremos reunir diversas pessoas que transitam com suas produções pela arte da performance.
Termino igualmente, e espero ser nesse ano ainda, o políptico fotográfico Elma Çayı que Marca Meu Destino, que arranjo desde 2013 depois de uma autorresidência artística na Turquia; o vídeo El Canto del Minotauro e a máquina de metamorfosear-me em Minotauro; e, por fim, a parte três da série ausência de Páll Jónsson, que iniciei em uma outra residência artística, na Islândia, entre dezembro de 2015 e janeiro de 2016.
E estou a “emprestar” meu corpo para as performances Sem Título (1995), de Erwin Wurm, na exposição “do it”, de Hans-Ulrich Obrist, na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto; e Estar a Par (2017), de Tales Frey, no Athens Museum of Queer Arts (AMOQA) de Atenas; a “curar” as exposições individuais de Ana Seixas e Renan Marcondes no Centro para os Assuntos da Arte e Arquitectura na cidade de Guimarães; a preparar as obras para uma exposição coletiva que integro na Bienal de Gaia II e uma outra no Centro Cultural da Justiça Federal no Rio de Janeiro; e, por fim, a preparar a nova edição da eRevista Performatus.
6) QUE SITES VOCÊ COSTUMA VER?
Eu sigo várias instituições de arte, jornais, blogues etc. no meu Twitter e, depois, visualizo todo o conteúdo em forma de revista pelo aplicativo Flipboard no iPad ou na própria timeline do Facebook, onde quase não sigo nenhuma pessoa por querer ver somente esse conteúdo. Não tenho necessariamente um site específico que consulto e não vou fantasiar escrevendo, para não ser hipócrita, que só consulto “coisas sérias” na internet. Visito alguns sites como o do jornal português O Público, o da revista Carta Capital, o Serebii de notícias do universo do desenho animado Pokémon etc. Para a construção da cartografia da minha série El Minotauro e por consumo também próprio, por exemplo, visito infinitos tipos de sites de pornografia, como “Queer me Now”, “XVideos”, “Pornhub” etc., caso não tenha como seguir pelo Twitter ou Facebook.
7) QUE MÚSICAS VOCÊ OUVE?
Eu tenho uma mania de escutar repetida e exaustivamente alguns álbuns até cansar e depois passo para outros. Não tenho necessariamente algum estilo de preferência para ouvir. Simplesmente ouço.
No momento, estou dividido entre as trilhas sonoras dos filmes Suspiria (1977), do cineasta Dario Argento, concebida pela banda Goblin, e Animais Noturnos (2016), do cineasta Tom Ford, idealizada pelo compositor Abel Korzeniowski; os álbuns Mávastellið (1983), da banda Grýlurnar, Mulher (2015), do grupo As Bahias e a Cozinha Mineira, Tropix (2016), da Céu, Traigo un Pueblo en Mi Voz (1973), da Mercedes Sosa, Shoot Your Shot: Best Of Divine (2012), da Divine, Baby Sucessos: A Menina Ainda Dança (2015), da Baby do Brasil, ¡Cómo Está el Servicio… de Señoras! (1983), do grupo Almodóvar & McNamara, Parte II (2001), da cantora Nila Branco, L’Étonnant Serge Gainsbourg (1961), do Serge Gainsbourg, Marysia Biesiadna (1994), da Maryla Rodowicz, Queen of Siam (1980), da Lydia Lunch, e Junk (2016), da banda M83.
Gostei muito também de conhecer recentemente a música Amar Pelos Dois (2017), do português Salvador Sobral, e torço muito para que ele ganhe o Festival Eurovisão da Canção desse ano.
8) QUE EXPERIÊNCIA(S) COM ARTE FOI IMPORTANTE PARA VOCÊ?
Uma dessas experiências estéticas importantes foi o “encontro das dores” com a minha amiga artista maravilhosa Suzana Queiroga. Emociono-me sempre com sua produção artística confessional, seja pela videoperformance Olhos d’Água (2013), seja pelo tríptico Vida Secreta (2013), entre outras. Reflito e encontro a artista em mim em consequência; defino-a como uma das principais referências de construção do meu projeto estético Livro da Mata. Toda nossa trajetória do “encontro das dores” está documentada por mim em uma entrevista que ela cedeu-me outrora (veja em: MATA, Paulo Aureliano da. “‘Você Tem o Pincel, Tem Suas Tintas, Pinte o Paraíso e Depois Entre Nele’: Uma Entrevista Performática com Suzana Queiroga”; In: eRevista Performatus, Inhumas, ano 1, n. 6, set. 2013).
Outro momento que me marcou muito foi a delirante leitura do corrosivo romance Apocalipse Baby, de Virginie Despentes (Porto: Sextante Editora, 2011), que conta uma história em torno da investigação feita pelas detetives Lucie Toledo e Hiena para descobrir pistas do desaparecimento da adolescente Valentine. Despentes prendeu-me a cada palavra que lia e o final desse livro foi surpreendentemente como um soco em meu estômago. Também o que me assombrou muitíssimo foi me ver como Susan no filme Animais Noturnos (2016). Fiquei uns três dias estranho comigo mesmo pensando: “ok, faço trinta anos daqui a pouco, cheguei até aqui e é o que eu pensava querer quando estava com meus vinte anos?”. Mais três experiências estéticas interessantes que me recordo foram: visitar a exposição “Hilma af Klint: Painting the Unseen” em Londres; assistir à ópera Einstein on the Beach, em Montpellier; assistir ao tributo à cantora Mercedes Sosa, que aconteceu em Buenos Aires, pelo Youtube; entre outras.