Este texto de Joana Valsassina foi publicado em: VALSASSINA, Joana. Espaço para o Corpo: Obras da Coleção de Serralves: Brochura. Abrantes, Portugal: [s.n.], Museu Ibérico de Arqueologia e Arte, 2023.
À primeira vista, a obra A Amante Ideal (Depois de Emília Nadal) (2021), de Hilda de Paulo (Inhumas, Brasil, 1987), recentemente integrada na Coleção de Serralves por doação da artista, apresenta também uma perspetiva crítica sobre os estereótipos perpetuados em produtos de consumo, mas na verdade as suas implicações artísticas, sociais e políticas extravasam em muito esta leitura. A residir no Porto desde 2008, a artista, poeta, investigadora e curadora afirma-se como “travesti terceiro-mundista defensora do transfeminismo” [1], propondo na sua prática multidisciplinar a desconstrução de narrativas normativas, cisgéneras e coloniais. Neste trabalho, Hilda de Paulo referencia uma célebre obra de Emília Nadal intitulada A Esposa Ideal (1977) em que Nadal apropria, à semelhança de outros trabalhos do mesmo período, a linguagem publicitária e a forma de embalagens de bens alimentares instantâneos, comentando a ubiquidade e perversidade dos mecanismos de manipulação inerentes à sociedade de consumo. Revistando esta obra com um olhar crítico, Hilda de Paulo desafia não só os rótulos de “esposa” e “amante” refletidos na sociedade patriarcal, expondo o seu enviesamento sexista e normativo, como denuncia o preconceito, o apagamento e a violência sobre corpos e identidades tidas por dissidentes.
NOTA
[1] Em conversa com a curadora, Hilda de Paulo esclarece: “O termo ‘travesti’ nasceu dentro das ditaduras da América Latina como uma forma pejorativa de chamar as pessoas que não se enquadravam dentro do padrão cisgénero normativo. Hoje, o movimento trans e travesti latino-americano se empodera, ressignificando a palavra ‘travesti’ como um símbolo de força, de unicidade e de revolução. Por isso, não faz sentido traduzir ‘travesti’ para ‘mulher trans’ como erroneamente ocorre em Portugal, porque a palavra por si só carrega toda uma simbologia, uma representação, um papel e um lugar social dentro do contexto latino-americano. Portanto, travesti é uma identidade de gênero feminina latino-americana, sendo que a pessoa nem sempre se identifica de uma forma binária, não sendo ela nem homem e nem necessariamente mulher, apenas a travesti. Já o termo ‘terceiro-mundista’, é emprestado da escritora chicana Gloria Anzaldúa para se referir às travestis e pessoas trans imigrantes que vivem em Portugal e que são constantemente atravessadas pela transfobia, desigualdade e racismo como marcas diárias da vida social. A utilização do termo torna visível a produção de condições de vida características do terceiro mundo no interior dos limites territoriais de um Estado que pertence a um primeiro mundo.” A artista referencia, entre muitos outros textos que informam os estudos trans e queer, a publicação Transfeminismo de Letícia Nascimento, na qual a autora refere: “Reitero que qualquer verdade universal sobre os nossos corpos é um entrave para o feminismo. Não é a nossa ‘anatomia biológica’ que produz o género, mas o género, como indica Butler (2017), é o próprio processo pelo qual os corpos se tornam matéria. Afinal, nós não somos nossos corpos, nós fazemos nossos corpos. (…) Se, enquanto mulheres transexuais e travestis, interessamo-nos por uma vinculação ao feminismo, é porque compreendemos que nossas identidades dentro das mulheridades e/ou das feminilidades possuem conexões com as construções identitárias coletivas dentro do feminismo.” p. 40; 43 (São Paulo: Jandaíra, 2021). Para saber mais sobre a obra e o pensamento de Hilda de Paulo consultar: ciaexcessos.com.br/hilda-de-paulo/. Para uma leitura aprofundada acerca da utilização da palavra “travesti” consultar: Camila Sosa Villada, As Malditas, Lisboa: BCF Editores, 2022.