Poema
SABERES TRANSCESTRAIS
Hilda de Paulo / Julho de 2022
Que o amor comece a florescer
Em curiosas ações dançantes
Nas corpas-sobreviventes
Dos atos de desamor
E que o trágico destino
Que muito amarra
Quase todas
Seja desfeito por mim
Porque nossas corpas
É a minha responsabilidade
E tomar a palavra
Por mim mesma
Nos protegerá das “certezas”
Para nunca mais
Sermos vistas
Como “terroristas arco-íris”
Porque somos
Na verdade
Cura
– Ah, saberes transcestrais
Invada a minha corpa-sobrevivente
E faz dela a sua vontade
Porque assim
Escolho amar
Sou sua
Hilda de Paulo
Poema
DEISE-FLOR
Hilda de Paulo / Junho de 2022
Deise-flor
Exaustivamente
Te procuro
Por todos os cantos
Da enorme ruína
De concreto
Com partes inundadas
E portas
E paredes quebradas
Pela noite
A ruína se acaba
E não encontro
Deise-flor
Aconteceu
Igualmente
Noite anterior
De Deise-flor
Perdida
E não encontrada
Nos muitos corredores
Da estação de metrô
Saudades
Deise-flor
Amada filha
Que morreu
Nos braços
Da mamãe
Travesti
Que muito te ama
Poema
LEONOR LOTTE
Hilda de Paulo / Junho de 2022
Conhecimento soterrado
Da esquecida e solitária
Historiadora da arte
Leonor Lotte
Que apesar de sua língua afiada
As condições históricas
Não favoreceram seu discurso
Poema
SEM TÍTULO
Hilda de Paulo / Março de 2022
Imorais
Considerados contra natura
Pecadores e criminosos gravíssimos
Contra a moralidade e a vontade divina
Fazendo uma rebelião dolosa contra a criação de Deus
A estrutura da família, a hegemonia masculina e o matrimônio
Ameaçados pelas “confusões do sexo”
Levam as Ordenações a proibir que homens se passem por mulheres
E estas por homens
Homens e mulheres proibidos
De trajarem vestimentas de seu “sexo oposto”
Mas nos raros casos de intersexualidade
Ou em festas, jogos e representações teatrais
Os hábitos eram tolerados
E criminalizados
Se associados a práticas sexuais
À margem da moral aceita
Século XVI
Registros históricos de Portugal
De uma história dominante
Repleta de reminiscências de possibilidades alternativas
Para o nosso trabalho subversivo
De traçar novas linhas de mundos deixados para trás
1549
João da Rocha
Marinheiro preso
“Achado em trajes femininos”
Pela noite
20 de novembro de 1552
D. João III concedia uma carta de perdão a Leonor
Moradora de Lisboa
Presa sob a acusação de andar vestida com trajes masculinos
Pela noite
23 de novembro de 1554
O Piedoso concedia uma outra carta de perdão a Isabel Rodrigues Taborda
Viúva e moradora de Campo Maior
Presa sob a acusação de andar vestida com trajes masculinos
Gabão, calções e chapéu
Pela noite
Luzia
Natural de Águeda
Na mesma época
Achada em trajes de homem
Foi presa em Tancos
Mas logo fugiu da cadeia
1555
Sebastião
Vinte anos
Fama de fanchono
“Parece mais mulher que homem”
Segundo seu denunciante
Por prática nefanda
Foi punido em Lisboa
1556
Natural do Benim
A travesti negra Vitória
Acorrentada no grupo de mulheres negras cisgêneras escravizadas
No porão de um navio com destino a Lisboa
Sendo muito mais tarde descoberta ali para seu desconsolo
Jogava pedras em quem a chamava no masculino
Trabalhadora do sexo na Ribeira
Foi acusada e processada
Por prática sodomita
Na Inquisição
Poema
POR SOBREVIVÊNCIA, NÃO POR OPÇÃO
Hilda de Paulo / Março de 2022
A travesti brasileira Gisberta Salce
Para sempre fixada com quarenta e cinco anos
Na tortura e na morte
Esvaziada de vida
E nacionalizada como símbolo português
Pelo homonacionalismo de Portugal
Teve seu nome imortalizado
Como projeto de nome de rua na cidade do Porto
Em 2021
Mas o apego CIScolonial português
Em sua proposição estética
Para o espaço público
Supôs que Júnior fosse apelido
Pobre inocência CIScolonial
Mal sabem que Júnior
É adjunção ao nome em Portugal
E agnome no Brasil
Complexidade do Júnior no Brasil
Então
Ignorada em Portugal
Pela perspectiva CIScolonial portuguesa
Que habitou o projeto
De nomear uma rua
Com o nome
Da Gisberta
Porque Júnior
Está costurado ao patriarcal
Ao modo capitalista do nome familiar
Do patriarca que detêm algum poder
Da transferência de poder entre homens
Do pai para o filho
Oscilação
Do uso do nome morto
Com o nome social
Numa época em que não se podia mudar
Nos documentos o sexo e o nome próprio
Faz quem era próxima a Gisberta
Afirmar que ela usava o Júnior
Por sobrevivência
Não por opção
O processo de fazimento do nome da Gisberta
Por ela própria
Como construtora da própria forma
De se apresentar no mundo
Em cartas
Em cartões-postais
Foi apagado
Pelas considerações de terceiros
Triste apego estático CIScolonial português
Em sua proposição estética
Para o espaço público
Em 2021
Poema
A SOLIDÃO DA GUERRILHEIRA TRAVESTY INCENDIÁRIA
Hilda de Paulo / Março de 2022
I.
Eu
Eu estou tão ferida
Que tudo
Tem mais intensidade
Porque aprendi
A caminhar sozinha
A entender o mundo do jeito que consigo
A cuidar das minhas dores e feridas
A conviver com a solidão
Porque preciso do meu silêncio
Para poder sofrer
E morrer
Para depois renascer
E seguir
Porque aprendi
Não por vontade própria
Talvez por proteção
Pra não me machucar mais do que deveria
Por ser a última escolha
Ou não ser escolhida
Porque aprendi que passo
Por um processo seletivo diário
Pela norma imposta
Por nossa sociedade
Vista apenas
Para ser
Apontada
Julgada
Xingada
E morta
Não porque não existo “além de”
Ou porque não estou no seu lugar de convívio
Que já é algo a se pensar
II.
Porque
Eu existo
Em solidão
Ao tornar um abismo
Atravessado de memórias incertas
As lembranças que carrego
Antes mesmo da transição
Comendo bolo de banana com passas
Em sua casa
Mas agora sou mais “consumida” com medo
Do que amada
Por você
E o mundo solitário
Tomou-me de tal forma
Que evito pensar em desistir da vida
Porque o seu afeto
É um prato
Que amanhece
Cheio
Mas o desejo
Pelo meu corpo
É um copo
Que anoitece
Seco e vazio
Na solidão
Porque
Ainda assim
Jurei a mim mesma
Que não vou morrer
Porque viver
É a minha maior vingança
Mesmo sabendo
Que o amor
Escolhe
Prefere
E exclui