Mostra Performatus #1: O Corpo como Sujeito e Objeto na Arte (2014)

 

 

A Mostra Performatus #1: O Corpo como Sujeito e Objeto na Arte (realizada pela eRevista Performatus, em parceria com a Central Galeria de Arte e o Instituto Hilda Hilst-Centro de Estudos Casa do Sol) foi um evento idealizado pelos artistas Paulo Aureliano da Mata e Tales Frey, no qual foram congregadas diversas performances ao vivo, conversas com artistas e teóricos, além da exibição de uma exposição.

O núcleo comum a tudo que foi visto e discutido é a presença do corpo do artista como sujeito e objeto na ocorrência da arte. Como resultado, tem-se um embaralhamento dos elementos físicos artista/obra/público e uma dificuldade em se distinguir também as ações de criar ou fruir. A arte “acontece” em alguma zona híbrida na qual estas distinções já não fazem mais sentido.

 

exposição 

CORPO (I)MATERIALIZADO

com curadoria de Paulo Aureliano da Mata e Tales Frey

Central Galeria de Arte, São Paulo, SP, Brasil | do dia 27 de março a 03 de maio de 2014

 

Plano geral da exposição Corpo (I)materializado (2014). Central Galeria de Arte, São Paulo, SP, Brasil. Fotografias de eRevista Performatus

 

O corpo, longe do domínio da ilusão, pode ser um lugar aprisionador; ele mantém o sujeito condenado a um duro fardo de nunca o extravasar, de estar sempre “engessado” nesse ambiente que se locomove, transita, peregrina, mas que nunca se separa daquilo que constitui o indivíduo para além da sua matéria. Procuramos, então, por um corpo imaterial, incorpóreo, ou, conforme bem avalia Michel Foucault, um “corpo utópico”.

Diz Foucault que “o corpo humano é o ator principal de todas as utopias”. Então buscamos arrancar o nosso corpo deste espaço ao qual ele está condenado permanecer para que, assim, ele possa consagrar-se em um novo plano, para que possa realizar-se em um outro lugar. O sujeito deseja ir além do seu corpo, deseja ser/estar em outro corpo fora do seu original, almeja conquistar novas (i)materialidades. Imaginamos e ressignificamos essa nossa massa corpórea, tornando-a sempre nova, originando matéria “recém-nascida”, rejeitando a que persiste envelhecendo. Representamos sobre o plano autêntico de carne e osso talvez por medo do infortúnio, por temor do nosso inevitável desfecho, por desejarmos perpetuar a nossa existência, negando a cruel efemeridade da nossa permanência.

A morte, o sexo, a dor e a autoimagem diante do nosso próprio reflexo nos dão a consciência de que somos matéria sólida em progressiva degradação. A íntegra consciência sobre o nosso corpo surge justamente quando nos damos conta de que, depois da vida, não nos veremos mais em nossos espelhos e não nos entregaremos mais à concupiscência, ao deleite carnal. Mas há quem opte pela ilusão (ou realidade contrária ao niilismo) de esperar pela morte para que o corpo transcenda e finalmente se liberte da carne.

Com Corpo (I)materializado, agrupamos obras tangíveis (escultura, instalação, fotografias e vídeos) a discorrer acerca da natureza da performatividade (mesmo no que não procede de performance), questionando a efemeridade para prometer a constância material. Dilatamos/expandimos a noção do evento “ao vivo”, apresentando, além da própria exposição, os registros e seguimentos das ações performativas que podem, inclusive, adquirir autonomia como suporte artístico.

 

Artistas que integraram esta exposição:

 

Ana Hupe, Ana Montenegro, Beatriz Albuquerque, Beth Moysés, Berna Reale, Cia. Excessos, Daniel Toledo, Eduardo Kac, Elen Braga, Franko B, Jorge Soledar, Kira O’Reilly, Lenora de Barros, Lia Chaia, Manuel Vason, Marcela Tiboni, Márcio Banfi, Marcus Vinícius, Marina Abramović, Maurizio Mancioli, Mavi Veloso, Mayra Martins Redin, Nathália Mello, Nino Cais, Paulo Aureliano da Mata, Priscilla Davanzo, Raphael Escobar, Raquel Versieux, Snežana Golubović, Suzana Queiroga, Tales Frey, Tânia Dinis, Vicente Pessôa, Waléria Américo e Yuri Firmeza.

 

RESIDÊNCIAS ARTÍSTICAS NO INSTITUTO HILDA HILST-CENTRO DE ESTUDOS CASA DO SOL

 

Manuel Vason

 

Manuel Vason liderou o workshop Becoming an Image. Lá, desenvolveu ações individuais e colaborativas com artistas convidados – Ana Hupe, Ana Montenegro, Cecília Cavalieri, Daniela Glamour Garcia, Elen Braga, Henrique Lukas, Maurizio Mancioli, Nathália Mello, Paulo Aureliano da Mata e Priscilla Davanzo – entre os dias 18 e 25 de março de 2014. Organização e produção de Paulo Aureliano da Mata e Tales Frey. Assistência de produção de Nathália Mello. Fotografia de Jurandy Valença. Ver em: <http://www.manuelvason.com/becoming-image-workshop-campinas-brazil-2014/>.

 

Coletivo ES3 (André Bezerra e Chrystine Silva)

 

Em residência artística de 12 a 20 de abril no Instituto Hilda Hilst-Centro de Estudos Casa do Sol, André Bezerra e Chrystine Silva (Coletivo ES3) criaram duas séries fotográficas: Dos Deuses-Pétalas de Carne e (Des)Brotamentos. A primeira delas parte do mapeamento dos nomes que Hilda deu a Deus nos seus diferentes escritos, e a criação de “incorporações” de uma imagética pagã para esses deuses. Na segunda, exploraram composições corporais a partir de fusões com materiais da Casa do Sol, estudando o possível desenho dos deuses chamados grotescos, os quais derivam dos deuses pagãos romanos que uniam elementos minerais, vegetais e animais num mesmo corpo para delinearem suas imagens. Além dessas duas séries de fotos, ambos criaram mais dois vídeos, sendo um a partir da ideia poética de Derrelição da Obscena Senhora D., e outro a partir de um trabalho já iniciado anteriormente pelo coletivo chamado Landscape com Círculos Móveis. Fotografia de Jurandy Valença. Ver em: <http://coletivoes3.blogspot.pt/search/label/Residência%20IHH> e <http://performatus.net/estudos/coletivo-es3-hilda-hilst/>

 

PERFORMANCES AO VIVO

 

Jorge Soledar feat. Sol Casal, Atravessamento. Performance realizada na cidade de São Paulo, SP, Brasil. Março de 2014. Fotografia de Jorge Soledar

 

Loop B, Seriguela na Parede. Performance realizada na cidade de São Paulo, SP, Brasil. Março de 2014. Fotografia de Jorge Quintela

 

Ana Hupe, Zentai. Performance realizada na cidade de São Paulo, SP, Brasil. Março de 2014. Fotografia de Daniel Toledo

 

Luiza Prado e Natália Coutinho, A Altura dos Olhos. Performance realizada na cidade de São Paulo, SP, Brasil. Março de 2014. Fotografia de Tales Frey

 

Tânia Dinis, MONO-LOGO. Performance realizada na cidade de São Paulo, SP, Brasil. Março de 2014. Fotografia de Tales Frey

 

Daniel Toledo feat. Ana Hupe, Veste Nu. Performance realizada na cidade de São Paulo, SP, Brasil. Março de 2014. Fotografia de Tales Frey

 

Ana Montenegro e Maurizio Mancioli, Audição Assíncrona. Performance realizada na cidade de São Paulo, SP, Brasil. Março de 2014. Fotografia de Manuel Vason

 

Tiago Cadete, Americanizad@. Performance realizada na cidade de São Paulo, SP, Brasil. Março de 2014. Fotografia de Tales Frey

 

Clarissa Sacchelli feat. Renan Marcondes, Sem Título. Performance realizada na cidade de São Paulo, SP, Brasil. Março de 2014. Fotografia de Tales Frey

 

Mercedes Torres e Esteban Faroles, Sem Título. Performance realizada na cidade de São Paulo, SP, Brasil. Abril de 2014. Fotografia de Tales Frey

 

Paulo Vega Jr., P.I.C.C.R.V. (Performance II). Performance realizada na cidade de São Paulo, SP, Brasil. Abril de 2014. Fotografia de Tales Frey

 

Maíra Vaz Valente, Tecido Social. Performance realizada na cidade de São Paulo, SP, Brasil. Abril de 2014. Fotografia de Tales Frey

 

Rubiane Maia, Delírio. Performance realizada na cidade de São Paulo, SP, Brasil. Abril de 2014. Fotografia de Tales Frey

 

Contratempo Coletivo, Infusão. Performance realizada na cidade de São Paulo, SP, Brasil. Abril de 2014. Fotografia de Tales Frey

 

Felipe Cidade, Nós Somos a Autoridade. Performance realizada na cidade de São Paulo, SP, Brasil. Abril de 2014. Fotografia de Tales Frey

 

Vivianita, Toma o Teu Feminino: Da Pele ou INXCREMENT. Performance realizada na cidade de São Paulo, SP, Brasil. Abril de 2014. Fotografia de Tales Frey

 

Renan Marcondes, Hipótese sobre a Construção. Performance realizada na cidade de São Paulo, SP, Brasil. Abril de 2014. Fotografia de Tales Frey

 

Nathália Mello, Abscene, Uma Jovem Fêmea, da Tribo dos Tupinimós, de Água Que Se Esconde, Diz “Eu Aceito”, Hoje. Performance realizada na cidade de São Paulo, SP, Brasil. Abril de 2014. Fotografia de Tales Frey

 

Nathália Mello, Na Fibra do Tecido, A Estampa do Corpo Nu. Performance realizada na cidade de São Paulo, SP, Brasil. Abril de 2014. Fotografia de Paulo Aureliano da Mata

 

Fernando Ribeiro, Eu Prometo. Performance realizada na cidade de São Paulo, SP, Brasil. Abril de 2014. Fotografia de Tales Frey

 

Coletivo ES3, Não Conheço Nenhuma Razão Para Amar Senão Amar. Performance realizada na cidade de São Paulo, SP, Brasil. Abril de 2014. Fotografia de Tales Frey

 

Grasiele Sousa, Cabelódroma X. Performance realizada na cidade de São Paulo, SP, Brasil. Abril de 2014. Fotografia de Tales Frey

 

(em breve)

Elen Braga feat. Tathiane Oberleitner, Trabalho 6: Luta de Iniciação, da série Os 12 trabalhos. Performance realizada na cidade de São Paulo, SP, Brasil. Abril de 2014

 

Shima, Limite (Borderline). Performance realizada na cidade de São Paulo, SP, Brasil. Abril de 2014. Fotografia de Paulo Aureliano da Mata

 

Lucio Agra, Achar Play. Performance realizada na cidade de São Paulo, SP, Brasil. Abril de 2014. Fotografia de Paulo Aureliano da Mata

 

Solange Bonfil, Kurwa. Performance realizada na cidade de São Paulo, SP, Brasil. Abril de 2014. Fotografia de Rodrigo Munhoz

 

Priscilla Davanzo feat. Thiago Soares, Coleção. Performance realizada na cidade de São Paulo, SP, Brasil. Abril de 2014. Fotografia de Paulo Aureliano da Mata

 

Snežana Golubović, I love you. Performance realizada na cidade de São Paulo, SP, Brasil. Abril de 2014. Fotografia de Rodrigo Munhoz

 

CONVERSAS COM ARTISTAS E TEÓRICOS

 

Conversa com Lucio Agra realizada na cidade de São Paulo, SP, Brasil. Março de 2014. Fotografia de Tales Frey

 

Conversa com Manuel Vason realizada na cidade de São Paulo, SP, Brasil. Março de 2014. Fotografia de Tales Frey

 

Conversa com Suianni Macedo realizada na cidade de São Paulo, SP, Brasil. Abril de 2014. Fotografia de Tales Frey

Ver o artigo da autora concebido a partir de sua conversa em: http://performatus.net/estudos/performance-acao-na-construcao-de-outras-espacialidades/

 

Conversa com Vanja Poty realizada na cidade de São Paulo, SP, Brasil. Abril de 2014. Fotografia de Tales Frey

 

Conversa com Snežana Golubović realizada na cidade de São Paulo, SP, Brasil. Abril de 2014. Fotografia de Tales Frey

 

Conversa com André Bezerra (Coletivo ES3) realizada na cidade de São Paulo, SP, Brasil. Abril de 2014. Fotografia de Tales Frey

 

Conversa com Suzana Queiroga realizada na cidade de São Paulo, SP, Brasil. Abril de 2014. Fotografia de Paulo Aureliano da Mata

 

Conversa com Fernanda Carlos Borges realizada na cidade de São Paulo, SP, Brasil. Abril de 2014. Fotografia de Tales Frey

 

TEXTOS E VÍDEO

 

Reminiscências a partir da Mostra Performatus #1

Este texto de Julia Pelison foi publicado em: eRevista Performatus (Inhumas, Ano 2, n. 10, maio de 2014, ISSN 2316-8102).

 

Talvez nada do que eu diga seja exatamente uma análise crítica, mas sim uma constatação do que vivi, uma memória pessoal que pode ser partilhada tanto com quem imergiu num acontecimento tão intenso como a Mostra Performatus #1 quanto com quem quer tirar impressões sem ter estado fisicamente presente no mesmo espaço que eu. Crio aqui uma narrativa em primeira pessoa, uma descrição, uma crônica com impressões de quem frequentou toda a programação de um episódio marcante para a arte da performance que é desenvolvida, nessa segunda década do século XXI, em todo o mundo e não só no território brasileiro, não só na cidade de São Paulo.

Através do enredo O Corpo como Sujeito e Objeto na Arte, a Mostra Performatus #1, evento encabeçado por Paulo Aureliano da Mata e Tales Frey, reuniu uma série de artistas (do Brasil e do mundo) que se apresentaram ao vivo entre 27 de março e 11 de abril de 2014 e, também, um extraordinário conjunto de vestígios de ações performáticas que formou a exposição Corpo (I)materializado. Além das ações ao vivo e da exposição na Central Galeria de Arte em São Paulo, a Mostra Performatus #1 concretizou duas residências artísticas, sendo uma com o artista italiano radicado em Londres, Manuel Vason, que realizou o workshop Become an Image em parceria com nove artistas convidados, e outra com o coletivo ES3, que é composto por André Bezerra e Chrystine Silva.

Já na abertura da mostra nos deparamos com três ações que consagravam por completo o conceito estrito proposto no evento; uma delas foi executada por Ana Hupe, outra por Loop B e a terceira por Jorge Soledar.

Ao entrar no espaço, numa atmosfera completamente vibrante composta pelos sons simultâneos de quatorze vídeos (pertencentes à exibição Corpo (I)materializado), que se misturavam e formavam um caótico ruído, noto um pequeno muro de gesso que atravessa o canto da sala de exposição de forma diagonal e, ali, vejo uma performer aprisionada pela instalação/escultura, tornando-se, assim, parte dela também. O muro de gesso, rígido, foi construído por cima de suas pernas e a impedia de fazer muita movimentação; tornava o corpo da artista Sol Casal quase estático. Assistíamos apenas ao sutil movimento desempenhado pela sua respiração e, por vezes, a algum outro mínimo sinal que o seu corpo emitia, como o piscar dos olhos e o ato de umedecer os lábios. Claro, por vezes surgiam movimentos menos sutis que esses, mas eram raros. A ação termina com o artista Jorge Soledar a libertar aquele corpo feminino para devolver a sua fluidez para fora do espaço restrito em que estava. A ação, muito bem escolhida pela curadoria, era a mais pura manifestação do corpo (i)materializado, quando exibia três momentos: a instalação com o corpo atravessado pelo muro de gesso, o ato de libertar em público aquele corpo e o resultado do muro marcado pelo corpo que já não se encontrava mais ali materializado, que buscou novas formas de consolidação, novas materializações.

Ana Hupe, manteve-se também aprisionada em seu indumento Zentai com estampa tropical, descrevendo como seu corpo ornado e camuflado de cores que remetem à nossa fauna e flora está sufocado numa metrópole asfixiante como a cidade de São Paulo. A artista chegou já trajada no ambiente da galeria, ou seja, percorreu antes um caminho que envolveu grande parte da Vila Madalena.

Loop B fez música com instrumentos não convencionais, remetendo nosso olhar para a sua própria trajetória, a qual envolve uma série de composições sonoras experimentais, bem como para a da banda industrial Einstürzende Neubauten, enfatizando a relação existente entre o corpo e o espaço urbano quando se utiliza de resíduos pesados como latarias de carro, um andaime de construção, restos de ferro-velho, promovendo uma composição harmônica que bem ilustra os barulhos que ouvimos diariamente, os sons ruidosos que evidenciam nosso aprisionamento, nossa materialização inescapável que não está nunca fora do nosso próprio corpo, que, por consequência, está confinado ao espaço que habitamos. Mas Loop, ao mesmo tempo, torna isso lúdico e reinventa essa relação, tornando-a mais leve quando imaterializa, por meio da arte, sua existência num corpo ilusório, num corpo que brinca e nega (ou não precisa se apoiar) o termo fugere urbem, que foi utilizado na literatura árcade para subestimar o meio urbano como aprisionador.

Priscilla Davanzo, com a colaboração de Thiago Soares, crava na sua carne a relação existente entre o seu corpo e a cidade de São Paulo; ela se utiliza de objetos ganhados alguns dias antes do início de sua ação para prendê-los literalmente ao seu corpo através da sutura.

O trabalho de Clarissa Sacchelli, com colaboração de Renan Marcondes, faz alusão ao fardo que carregamos de não podermos escapar dos nossos próprios corpos, de não podermos extravasar a carne que cerra a nossa existência, mas quando libertados das fitas colantes que os prendiam na parede da galeria, eles ilustram a noção que nos é dada sobre o “corpo utópico”, explicam a devolução da ilusão de liberdade ao sujeito.

Na ação de Shima, por instantes percebemos a presença da utopia do corpo quando este é coberto por uma densa camada de argila. Inicialmente, o artista apresenta-se revestido de um irreprochável terno arrematado pela tão sufocante gravata, criando uma metáfora do sujeito contemporâneo preso ao fardo do trabalho na lógica capitalista que nos rodeia. Ao despir-se e mergulhar na argila, conjeturamos sobre uma suposta libertação daquele corpo, mas, depressa, o corpo já não mais mantém-se nu, coloca-se prontamente impecável dentro do mesmo traje que inicialmente ocupava, no entanto, dessa vez, com a argila intermediando o contato da pele com o tecido, com uma camada a mais a distanciar o olhar de fora para o cerne daquele sujeito.

Tenho tudo arraigado e ainda em processo de “cozimento” na minha memória: Nathália Mello, que estabelece uma reflexão sobre a sua subjetividade, resgatando suas origens referenciadas através da reconstrução da memória resgatada de sua avó índia e de outra, que foi operária, gerando, então, uma nova estruturação do seu self; Felipe Cidade, que remarca em coloração negra o desenho de um mapa em cada uma das palmas de suas mãos com o recurso da tatuagem produzida ao vivo, realçando imagens que já foram realizadas em outro momento, refazendo, reafirmando, portanto, uma simbologia já assinalada na sua pele; Nathália Coutinho e Luiza Prado, que focam no que é comunicado sem verbos; Daniel Toledo, que debocha com precisa maestria sobre a condição de pudor relacionada ao indumento; Ana Montenegro e Maurizio Mancioli, que magnetizam os espectadores com uma composição minimalista e fazem com que muitos percam a noção de tempo num concerto instrumental, que chega quase a ser hipnótico.

Muita imagem percorre a minha cabeça ainda: o chá no meio urbano com as meninas do Contratempo Coletivo; a hidratação obsessiva de Vivianita; o desvario de longa duração sob efeito de calmante de Rubiane Maia; o dizer o próprio nome por extenso sem quase nunca errar, de Paulo Vega Jr.; a singeleza para abordar um assunto tão pesado como o da prostituição, na ação de Solange Bonfil; a violência e determinação na performance de Elen Braga; a precisão da composição (des)equilibrada de Renan Marcondes; as relações de trocas vivas estabelecidas com Maíra Vaz Valente; a composição perspicaz de Tiago Cadete sobre a construção da sua própria subjetividade, ao envolver sua situação de estrangeiro (ou de um novo cidadão cosmopolita) e, também, categorias correspondentes à sexualidade.

Ainda possuo vivos em mim os ruídos vindos das palavras digitadas por Tânia Dinis, assim como o sarcasmo de Lucio Agra na sua composição que misturava Jesus Cristo com Hélio Oiticica. De Grasiele Sousa, guardo a sua imensa genialidade para refazer, de forma oportuna, uma ação clássica da história da performance brasileira: Pancake (2001), de Márcia X. De Fernando Ribeiro, o humor apreendido por todos é, evidentemente, a prova de que seu discurso, circunscrito em promessas que os seres humanos fazem uns aos outros, ultrapassa a obviedade. Mercedes Torres e Esteban Faroles me emocionaram e me fizeram atingir a percepção de como a proposta de acampar por três dias ininterruptos na galeria pode resultar em analogia de uma verdadeira relação afetiva, com início, meio e fim. Snežana Golubović me ensinou a não ter medo de dizer “eu te amo”. Por fim, o coletivo ES3, assim como a forte parceria da dupla que realizou a mostra, Paulo e Tales, confirmaram que vale mesmo a pena proferir, quantas vezes for preciso, o amor que sentimos, mesmo que seja no trabalho, mesmo que seja na vida e/ou na arte. Vale a pena.

Das palestras, reverberam os discursos coerentes, completamente racionais e sem deslizes de Suianni Macedo sobre performance e espaço urbano, a ousada conversa com Vanja Poty – que, para discutir ritual nas artes cênicas, apresentou-se despida e serviu vinhos para serem bebidos no gargalo, propondo uma ritualização efetiva no espaço, transformando toda a massa de pessoas em communitas –, o bate-papo sobre processo de criação com o fotógrafo Manuel Vason, a emocionante história que mescla arte e vida contada por Suzana Queiroga, as ações de Snežana Golubović apresentadas através de palavras por ordem alfabética, a fala precisa (com certo tom de humor) de Fernanda Carlos Borges, o vasto conhecimento teórico de Lucio Agra, bem como o trabalho de raça do Coletivo ES3.

O que ficou vivo na recordação de quem percorreu a Mostra Performatus #1 entre os dias das apresentações ao vivo pode não ser lembrado numa cronologia exata, mas, naturalmente, não escapa facilmente das nossas lembranças, que resgatam as imagens, misturam os sons, os cheiros, os tatos e, também, todo o paladar que sentimos nos encontros que se sucederam a cada dia. Os cinco sentidos foram acionados diariamente e isso impossibilita um total descarte da memória que constitui aquela vivência. É irrevogável o que foi promovido pelos fundadores da eRevista Performatus e amparado pela Central Galeria de Arte e pelo Instituto Hilda Hilst-Centro de Estudos Casa do Sol; este é um evento que, provavelmente, entrará para a história e, naturalmente, fará imenso sentido para a posteridade comprometida com a arte da performance no Brasil e em todo o mundo.

 

 

Gabriela Longman entrevista Tales Frey, dia 23 de março de 2014

 

GABRIELA LONGMAN: Em que contexto surge a revista Performatus e como ela atuou ao longo do seu primeiro ano de existência (nov. 2012-nov. 2013)?

 

TALES FREY: O contexto inicial foi o de desfazer uma enorme lacuna que observávamos sobre revistas especializadas no gênero artístico da performance em língua portuguesa. Não existem muitas opções de revistas especializadas em performance na nossa língua. Encontrávamos poucos artigos escritos em português sobre o gênero e, ainda, em muitos casos (não todos), eles eram exageradamente acadêmicos ou, então, superficiais demais. Não encontrávamos grande abundância de textos fundamentais para a pesquisa nesta área que já tivessem sido traduzidos de um outro idioma ou escrito, desde o princípio, no nosso próprio. Outro ponto que fez com que Paulo Aureliano da Mata e eu ficássemos motivados pela consolidação da Performatus foi a exclusão. Conhecemos textos extraordinariamente relevantes que não foram integrados em determinadas revistas da área das artes cênicas ou visuais, porque essas revistas exigem certas regras que tiram a espontaneidade do texto e acabam por embrutecê-lo num molde muito rígido sob formatações intransigentes. Pior é quando essas revistas não oferecem espaço para a novidade; muitas ficam estagnadas em discutir uma temática já debatida sobre um artista que todos conhecem. Com a Performatus, tentamos ao máximo explorar a novidade e não apenas fazer ecoar o que vemos por aí.

Desde a origem, propusemos publicar desde os textos mais circunspectos aos mais ousados e artísticos, desde os textos sobre processos criativos de artistas ainda menos conhecidos até críticas sobre artistas completamente inseridos num contexto mainstream. Damos espaço a autores pouco conhecido como também aos mais conhecidos; todos merecem espaço.

 

GABRIELA LONGMAN: Como foi estruturada a programação da Mostra Performatus? Que linhas de pesquisa dentro do universo da performance aparecem nela contempladas?

 

TALES FREY: A ideia inicial era fazer uma reunião de artistas e teóricos dos cinco continentes e das cinco regiões do Brasil. Sem nenhum apoio financeiro, reunimos quem quisesse entrar para o time e, então, de forma extraordinária, a grande maioria aceitou. Não conseguimos reunir participantes dos cinco continentes, mas apenas uma parte deles. Já as cinco regiões do Brasil, nós conseguimos. Tentamos fugir do mesmo eixo já bastante especulado.

Claro, também procuramos abarcar o máximo de linhas de pesquisa a partir da performance: desde as mais efêmeras e anticomerciais até as mais comercializáveis que originam resquícios completamente vendáveis. Performances sonoras, performances mais calcadas nas artes visuais, mais amparadas pela dança ou teatro, enfim, procuramos a heterogeneidade que existe nesse gênero. Também, convidamos teóricos que debatem o gênero da performance e seus desdobramentos em subgêneros tais como a videoperformance e fotoperformance. Temos, inclusive, trabalhos de artistas que nem se consideram performers, mas que, nas suas concepções, inserem certa performatividade.

Mesmo sem apoio, estruturamos a primeira edição da Mostra Performatus com todo aval da Central Galeria de Arte de São Paulo, e, para fazer um evento com raça, tivemos contribuição fundamental tanto por parte dos organizadores como de todos os convidados e envolvidos.

 

GABRIELA LONGMAN: Qual é a periodicidade prevista para a mostra? A ideia é fazê-la sempre na Central ou experimentar diferentes espaços/formatos?

 

TALES FREY: Esperamos fazer o evento anualmente. A Central é um espaço incrível e a equipe dessa galeria é super acolhedora. Talvez esse seja o espaço oficial, mas, para além dele, vamos nos empenhar em realizar extensões em outras instituições, como, por exemplo, foi a do workshop Becoming an Image realizado como parte da Mostra Performatus #1 no Instituto Hilda Hilst-Centro de Estudos Casa do Sol, em Campinas-SP, com o fotógrafo Manuel Vason junto dos nove artistas brasileiros convidados: Ana Hupe, Ana Montenegro, Cecilia Cavalieri, Daniela Glamour Garcia, Elen Braga, Henrique Lukas, Maurizio Mancioli, Nathália Mello e Priscilla Davanzo. Temos, ainda, intenção de fazer outra dilatação desta primeira edição do evento em Portugal, no Centro para os Assuntos da Arte e Arquitectura em Guimarães.

 

GABRIELA LONGMAN: Existe um aumento do interesse pela performance no Brasil? O grande número de pesquisas universitárias e publicações nesse sentido revela uma expansão desse campo?

 

TALES FREY: Com certeza. É uma expressão artística mais difundida hoje no país e, embora seja uma arte já disseminada em certa medida, é ainda ausente de um rótulo muito preciso e, então, talvez essa sua característica seja capaz de gerar intensa reflexão e, por isso, gere bastante interesse nos estudiosos (artistas, teóricos etc.); muito mais do que a de um outro gênero artístico que tem seus limites mais estabelecidos.

 

GABRIELA LONGMAN: Num contexto social em que o corpo é tantas vezes reduzido à condição de mercadoria, a performance se estabelece como um meio alternativo de subjetivação. Que sentidos políticos esse tipo de manifestação eminentemente corpórea assume hoje?

 

TALES FREY: O corpo é político mesmo sem querer ser. O corpo expressa o que já tem de signo e é espaço para expressões de novos signos. Ele contém suas próprias metáforas e pode acolher, também, significados que o artista queira imprimir sobre ele. Em nossa atualidade tão multiculturalista, o corpo é um meio eficaz de abordagem dessa subjetivação.

 

GABRIELA LONGMAN: Como curador da mostra, que indicações você faz a um público não ou pouco familiarizado com este universo?

 

TALES FREY: Que venham sem nada preestabelecido; todas as percepções são válidas. Não posso (Paulo também não pode) dizer que o público já experiente seja capaz de compreender melhor do que o leigo. Talvez os olhos desses “habilitados” para serem espectadores de performances já estejam contaminados por preceitos que precisam retomar (ou encontrar) a pureza. O pouco (ou nada) familiarizado está em vantagem, porque ainda pode ser completamente genuíno.

 

Vídeo

 

 

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