“Entrevista com Paulo Aureliano da Mata”, por José Carlos Henrique

 

Paulo Aureliano da Mata

Entrevista a José Carlos Henrique, em 05 de setembro de 2015

 

Arquivo pessoal de Paulo Aureliano da Mata

 

JOSÉ CARLOS HENRIQUE: Paulo Aureliano, conte-nos um pouco de sua arte e suas influências. O que mais te inspirou a seguir na carreira de artista? O que mais te instiga em sua arte?

 

PAULO AURELIANO DA MATA: Eu destruo meu passado e em seguida o reconstruo no meu universo poético de criação. Todos os meus trabalhos estão estritamente relacionados com a minha biografia.

Parafraseando Marcel Duchamp [1], eu acredito que a literatura tem um papel muito importante no meu modo de fazer arte e de viver.

Me chamo Paulo José Almeida Lopes e, em 2006, escolhi o nome artístico Paulo da Mata a partir de um sonho épico, no qual escrevia imagens de um matagal num livro. No ano de 2009, ao terminar de ler o livro Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, resolvi acrescentar Aureliano ao meu nome e, presentemente, lendo o livro A Tristeza dos Anjos, de Jón Kalman Stefánsson, assumo um outro nome artístico, Páll Jónsson, para um trabalho que ando a desenvolver sobre a ausência.

No momento, minhas influências ideológicas e plásticas estão em torno da arte confessional de Louise Bourgeois, da mitologia nórdica, da literatura islandesa, do pensamento de Carolee Schneemann, do “espedaçamento” autobiográfico de Suzana Queiroga, dos escritos de Simone de Beauvoir e da teoria da body art focada na tatuagem.

Isso tudo assumidamente começou em 2000, quando eu ainda morava em Inhumas (Goiás, Brasil), onde tive uma paixonite na oitava série pela minha melhor amiga de sala de aula. Ela foi a responsável por me “apresentar” para a arte em geral. Com ela senti a necessidade de explorar o mundo culturalmente. Viajávamos sempre para Goiânia para irmos a concertos musicais, como ao inesquecível Memórias, Crônicas e Declarações de Amor Tour, de Marisa Monte.

Depois disso, nos anos seguintes, como quase nada que me interessava acontecia em Inhumas, comecei a pesquisar nos jornais os eventos culturais que ocorriam em Goiânia. Comecei a ir para lá assistir a concertos ou a peças de teatro pelo menos duas ou três vezes por mês, e sempre dormia na rodoviária por não ter ônibus de volta para Inhumas depois do horário das apresentações que eu assistia.

Já em 2005, quando fui visitar minha tia-avó e primos em São Paulo com a minha avó e uma outra tia-avó, tive a oportunidade de assistir a dois espetáculos: no Teatro Augusta, a adaptação teatral do livro O Terceiro Travesseiro, de Nelson Luiz de Carvalho; e, no Teatro Abril, o musical O Fantasma da Ópera. A partir dessa viagem e morando em Goiânia para concluir o ensino médio decidi, através de minhas pesquisas, que queria fazer o bacharelado em Artes Cênicas da Faculdade de Artes do Paraná (FAP). Como tinha a prova de aptidão, decidi frequentar um curso prático de teatro em Goiânia e estudar por conta própria a história mundial do teatro para a prova teórica.

No mesmo ano, um dos livros escolhidos para o vestibular da Universidade Federal de Goiás foi Calabar: o Elogio da Traição, de Chico Buarque e Ruy Guerra. Como alguns professores do colégio sabiam que eu estava me preparando para o vestibular de Artes Cênicas, me convidaram, junto com alguns outros alunos, para formar um grupo de teatro com a intenção de representar algumas partes do texto. Inocentemente topei, mas sem saber muito onde iríamos nos apresentar. Ensaiamos por uma semana e após descobri que seria num evento que reunia todos os colégios do Centro-Oeste no Teatro Rio Vermelho. Essa experiência, diante de um público de quase duas mil pessoas, foi extremamente importante para eu entender o poder do ator em cena.

Como não passei no vestibular da FAP e na altura estava lendo as cartas trocadas entre Maria Clara Machado e sua família, publicadas no livro Eu e o Teatro, decidi me mudar para o Rio de Janeiro a fim de estudar na escola de teatro O Tablado. Depois me matriculei no curso técnico da Casa das Artes de Laranjeiras, onde conheci a diretora, dramaturga e pesquisadora Celina Sodré. Para mim foi muito importante conhecê-la e depois estudar com ela no Studio Stanislavski. Ao mesmo tempo comecei a trabalhar como modelo e a frequentar inúmeros workshops no Rio de Janeiro e em São Paulo. Achava (e ainda acho) que é muito importante frequentar workshops, pois sempre estamos em contato com o universo de trabalho de outros artistas. Tiramos sempre de cada uma dessas experiências alguma coisa positiva para nós.

Em dezembro de 2006, conheci meu parceiro de vida e arte, Tales Frey e, em 2007, fui convidado por ele para substituir um ator em sua encenação Os Sapatinhos Vermelhos, que esteve em cartaz em duas temporadas no clube noturno Fosfobox, no Rio de Janeiro. Foi uma experiência bastante interessante, mas gostaria muito de compartilhar a vivência que tive depois, na 6a edição do Festival de Teatro ENCONTRARTE (Nova Iguaçu, Brasil), com a desmontagem do cenário dessa peça. Um dia depois da apresentação, eu e o Tales voltamos ao espaço da apresentação para desmontarmos todo o cenário para em seguida o transporte ir buscá-lo. Chegamos mais cedo, conforme o combinado com o transporte, e fizemos toda a desmontagem. Estávamos tão cansados que dormimos profundamente no meio das cadeiras vazias da plateia do teatro. Quando o transporte chegou, alojamos todo o cenário na carroceria para o levarmos de volta para casa. Não havia lugar no transporte para irmos de carona, então fomos deitados na carroceria junto com todo o cenário, olhando para o lindo céu azul. Foi uma sensação maravilhosa, me senti totalmente realizado por estar fazendo o que eu realmente gostava, mesmo estando numa situação feita na raça, sem subsídios. Era estar com o coração aberto para meus sonhos.

Ainda em 2007, frequentei quase todo o primeiro semestre da licenciatura em Dança na maravilhosa Faculdade de Dança Angel Vianna, no Rio de Janeiro. Não concluí esse primeiro semestre por conta de o Tales ter passado no mestrado em Estudos Artísticos da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto em Portugal. Com isso, resolvi transferir meu curso para o de Teatro na Escola Superior Artística do Porto. Mudei-me para Portugal em outubro de 2007.

 

Participação de Paulo Aureliano da Mata no Laboratory Karawanasun de Rena Mirecka no Instytut im.Jerzego Grotowskiego em Brzezinka na Polônia em 2012. Fotografias de Maciej Stawiński

 

Em 2008, após frequentar o primeiro semestre, decidi interromper a faculdade no Porto para viajar culturalmente/educativamente por um período. Foram muito interessantes as experiências que tive em contato com outras culturas. De todas essas andanças, destaco até hoje três importantes momentos transcendentais para mim: 1) ver a obra El 3 de mayo en Madrid, de Francisco de Goya, no Museu do Prado; 2) dentre os inúmeros cursos que frequentei no Instituto Grotowski na Polônia, em especial o Laboratory Karawanasun, de Rena Mirecka; 3) a vivência que tive na minha autorresidência artística independente na Turquia, em particular nos vales ao redor da cidade de Göreme, que me conduziu à criação do inacabado filme Elma çayı que Marca Meu Destino (2013-).

Ainda em 2008, eu e o Tales fundamos a Cia. Excessos. Inicialmente convidamos vários artistas, porém, no final, percebemos que os componentes deveriam ser apenas ele e eu por somente nós estarmos trabalhando, fazendo algo pela nossa criação. Assim, a Cia. Excessos tornou-se uma “pré-Aliança” de nossa vida, onde passamos a reunir todos os nossos trabalhos artísticos numa plataforma virtual.

Aqui é onde começo a pesquisar e trabalhar com performance. Desse período cito a minha participação na performance O Outro Beijo no Asfalto, do Tales. A primeira versão dessa performance dele ocorreu na rua dos Clérigos, na cidade do Porto, em janeiro de 2009. Tal ação consistia em um beijo de trinta minutos em que os participantes vestiam trajes invertidos, sendo eu com vestido de casamento tido por feminino, e a performer Berenice Isabel de traje considerado masculino. Ao iniciar o beijo, escutei algumas vozes gritando: “vamos jogar pedra” ou “isso é pro Carnaval”. Sempre há tensão quando se está performando, pois tudo pode acontecer vindo do público. Com essa mesma performance, em agosto de 2011, na praça Plattan de Estocolmo, ouvimos agressivamente: “Isso não é arte! Vão arrumar um motel para vocês se foderem”. Além disso, levamos um tapa que quase caímos e, no final, recebemos um convite dos mórmons para participarmos do movimento religioso dos Santos dos Últimos Dias. É interessante notar, em cada versão realizada dessa performance, como um beijo heterossexual concebido sob uma lógica que se opõe à heteronormatividade mundana causa tanto incômodo.

Candidatei-me à licenciatura em História da Arte na Faculdade de Letras da Universidade do Porto em 2009. Foi extremamente importante para minha formação de artista o contato acadêmico desse universo, pois me deu um rico embasamento teórico. Sempre encarei que devemos cursar a faculdade e ao mesmo tempo ir construindo coisas por fora dela, para no final não termos somente o diploma do curso e nada mais. Por exemplo, depois de ter feito um trabalho acadêmico sobre a indumentária ícone do Rei Luís XIV no Ballet de la Nuit, que fiz para a disciplina de barroco, convidei minha amiga, que é historiadora da arte, Suianni Cordeiro Macedo, para organizarmos e traduzirmos do francês a biografia de Henri de Gissey escrita por Anatole de Montaiglon. O processo durou pouco mais de um ano e foi muitíssimo interessante vivenciar o surgimento de um livro.

O universo da escrita foi mais densamente vivenciado através da criação da eRevista Performatus juntamente com o Tales, em 2012. Resolvemos criar uma revista eletrônica dedicada diretamente ao universo da performance, já que muitos dos nossos escritos sobre o assunto eram negados pelas revistas tradicionais de teatro e/ou dança. Nota-se que, em 2012, não havia nenhuma revista em língua portuguesa sobre esse gênero com periodicidade regular. O nosso foco é publicarmos em língua portuguesa, divulgarmos conhecimento para esse território falante, e não nos voltarmos para a internacionalização da nossa eRevista. Assim, somos as regras e não seguimos regra alguma em nosso programa.

Além de ser o editor da eRevista Performatus, foi muito importante, como artista, entrevistar minha amiga e artista carioca Suzana Queiroga (ver: MATA, Paulo Aureliano da. “‘Você Tem o Pincel, Tem Suas Tintas, Pinte o Paraíso e Depois Entre Nele’: Uma Entrevista Performática com Suzana Queiroga”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 1, n. 6, set. 2013.) sobre seu universo poético. A vivência de mais de um ano que tivemos foi o fruto daquela entrevista. Na altura, a Suzana estava no processo de finalizar os preparativos para a exposição Olhos d’Água no MAC-Niterói. Então, acompanhar todo esse universo foi muito gratificante como artista e humano.

A construção da coleção de obra de arte, que eu e o Tales possuímos e que faz parte do acervo da eRevista Performatus, também me ensinou muitíssimo sobre o cruel mecanismo do mercado da arte, onde muitos artistas se perdem como criadores e passam a ser vagos produtos.

Narro todo esse percurso porque acredito estar trabalhando em diversas áreas da arte e é claro que isso reflete na minha criação artística. Acredito muito na imagem de uma bagagem em que colocamos todo nosso conhecimento adquirido nela e sempre que precisamos regressamos a ela para acessar o conteúdo para a nossa criação. E o que mais me instiga como artista é a possibilidade de sempre poder conhecer mais e mais e poder colocar todo esse conteúdo na minha bagagem cultural. Finalizo essa questão com a afirmação do sábio catalão no livro Cem Anos de Solidão: “O mundo estará fodido de vez no dia em que os homens viajarem em primeira classe e a literatura no vagão de carga” (Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2009, p. 405).

 

JOSÉ CARLOS HENRIQUE: O gênero body art (ou simplesmente arte do corpo) foi uma opção ou uma necessidade? Como você vê sua relação com essa manifestação artística hoje?

 

PAULO AURELIANO DA MATA: “Para M. B. C., que me iludiu e me deixou forte o bastante, fazendo com que eu ganhasse uma porra de uma cicatriz na minha cintura”, fragmento pertencente à dedicatória do texto-conceito do meu primeiro trabalho de body art, Romance Violentado (2011).

And I know it’s true that visions are seldom all they seem [Ainda sim eu sei que é verdade que visões raramente são o que parecem]: O dia em que eu tatuei o nome do M. na minha cintura foi o dia em que descobri, via Messenger, pela amiga dele, que ele fazia aniversário de um ano de namoro com um outro garoto. A promessa de amor entre M. e eu, que consistia em eu tatuar o nome dele no meu corpo e vice-versa foi quebrada, e a minha reação foi arrancar uma parte da tatuagem ainda fresca com uma caneta bic, e, imediatamente, remover o restante através de uma cirurgia local com um dermatologista. A cicatriz linear e fina de quatro centímetros foi tampada anos mais tarde por uma tatuagem de borboleta – desenho esse que foi retirado de uma das obras de Genaro de Carvalho. “A borboleta, símbolo da transformação, é frequente em Genaro de Carvalho, representando possivelmente a sua constante busca por inovações” (ver em: SILVA, Simone Trindade Vicente da. “Genaro de Carvalho: O Artista Tapeceiro”. In: Revista de Arte Ohun. Salvador, ano 1, n. 1, s/d).

 

Reprodução do Instagram de Paulo Aureliano da Mata/ 01 de dezembro de 2012

 

A body art tornou-se então uma necessidade para a reconstrução desse meu passado com base nessa minha trágica história de amor findada em uma tatuagem. Ao tatuar “Romance Violentado” no braço direito, procuro não só atrelar a deliberação artística às lembranças pessoais do passado, mas, a partir dessa construção, universalizá-las em perspectivas futuras ao refletir as utopias políticas abafadas, suprimidas e muitas vezes trucidadas ao longo da atormentada história da qual o corpo é inquestionavelmente parte integrante.

Como “uma crítica, pelo corpo, das condições de existência” (LE BRETON, David. Adeus ao Corpo: Antropologia e Sociedade. Campinas: Editora Papirus, 2007, p. 44.), na minha relação com a body art, tanto nesse trabalho como em outros dentro desse gênero artístico, busco, para quem os observa, não só uma subjetividade isolada e insignificante, mas uma alegoria de uma história, um olhar crítico voltado para um passado disposto a anunciar, em um presente momento, o que almeja para um futuro.

Concluo assim que a body art me serve “para transmutar a dança do meu ser interior em uma poesia de imagens” (ANGER, Kenneth. “A Modéstia e a Arte do Filme”. In: CENTRO CULTURAL DO BANCO DO BRASIL. Rio de Janeiro, São Paulo. Kenneth Anger: O Fetichista Pop: Catálogo. Rio de Janeiro: 2015, p. 11). Mas fazer perdurar uma ação ocorrida de forma efêmera num passado fugaz e traçar a tentativa de eternizá-la apenas sob os traços da tinta sobre e sob a pele não é o suficiente, pois a matéria corpórea é instável: ela se modifica a cada instante, envelhece, decompõe-se e morre. Por isso, quando é incidida unicamente sobre o corpo e sem o recurso do intermédio, a obra se extingue; o documento é, dessa forma, uma alternativa tanto para atualizar o instante de outrora como para intermediar todo o teor conceitual gravado sobre um corpo instável e que está fisicamente presente em lugares diversos, não permanecendo estático como um objeto em uma exposição convencional de arte que pode exibir um recorte pertencente ao passado desse corpo sob forma de impressão a cores e de forma bidimensional.

 

JOSÉ CARLOS HENRIQUE: Seu próprio casamento se tornou uma performance intitulada Aliança. Como foi essa experiência? Conte-nos.

 

PAULO AURELIANO DA MATA: Se a Cia. Excessos se tornou uma “pré-Aliança” da minha parceria de vida e de trabalho com o Tales, por que não tornar realidade a “Aliança”? Para isso decidimos não apenas casar, mas criar um rito de passagem em que o nosso casamento fosse o mote principal. Casamos no dia 15 de março de 2013 no cartório do registro civil da cidade natal do Tales, em Catanduva. Apesar de a regulamentação do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo no estado de São Paulo entrar em vigor a partir de dezembro de 2012, foi somente em maio de 2013 que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou uma resolução que obrigava todos os cartórios do Brasil a celebrar casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Então, na altura em que decidimos nos casar, apenas alguns cartórios realizavam o casamento e, mesmo depois dessa imposição a todos os cartórios do país pelo CNJ, muitos juízes de alguns estados agiam por vontade própria e não permitiam o casamento.

Como parte da exposição Beija-me, realizada entre os dias 5 e 13 de março de 2013 na Estação Cultura em Catanduva, e completa pela série de beijos do Tales, anunciamos que no último dia executaríamos o começo do rito de passagem intitulado “Aliança”. Havia um anexo disponível para acontecer tal performance no espaço da exposição e, em seu centro, existiam nossas silhuetas se beijando preenchidas por flores típicas de velório – crisântemos. O ambiente, apesar de ser lindo, tal como num casamento, era também mórbido, mas havia um certo tipo de humor. Convidamos, em nosso anúncio, o público para levar flores como se fosse para um funeral, pois, aqui, é importante observar que a condição de solteiro de cada um estava morrendo e estávamos entrando na condição de casados. Mesmo que nos divorciemos ou nos separemos judicialmente, nunca mais seremos solteiros. Então, tinha essa condição em nosso rito de passagem, que pressupunha um poder de transformação eficaz. Era uma transformação definitiva, sem volta.

Quando chegamos na exposição, para realizar a performance, Tales e eu estávamos vestidos igualmente com camiseta preta mesclada com estampa floral concebida pelo nosso querido estilista Mario Francisco, da Der Metropol. Ao entrar no recinto, sem convívio social da nossa parte, cada um começava a beijar a parede de um lado da entrada da sala – eu comecei pelo lado esquerdo e o Tales pelo lado direito. Meus beijos foram frenéticos, já os do Tales foram delicados. Para descrever a ação, imagine que estou de frente para a parede. Então o primeiro beijo se dá na minha altura, e assim vou beijando até chegar ao rodapé da parede. Existe uma racionalidade na construção dessa sequência de colunas de beijo. Tal racionalidade manifestava a nossa vida, o nosso cotidiano e, quando nos encontrávamos no espaço da performance, a coluna deixava de existir e surgia um caos de beijos na parede, que era a energia da relação. Finalmente, a ação terminava com um beijo entre Tales e eu.

Ao mesmo tempo, um vídeo com todas as nossas marcas corporais, desde cicatrizes a tatuagens, era exibido no espaço da performance. O Tales fotografou todas as marcas corporais do meu corpo e eu as do corpo dele. Assim, se as marcas possuem histórias, quando o vídeo foi editado para ficar super acelerado a intenção foi de fundi-las para não ser possível detectar qual era a marca de quem. O mesmo se passou com a silhueta de flores. As pessoas, no trânsito da performance, iam desconstruindo, desfazendo o beijo da silhueta. Na medida em que as pessoas chegavam com flores, além de o evento ganhar uma outra imagem com esses novos elementos, pouco a pouco sumia a imagem do beijo.

Outro detalhe importante é que o batom utilizado no início da ação era de coloração roxa, mas, com o processo de secagem na parede depois do beijo, ele vai ficando negro. No último ponto da performance, no caos de beijos, trocávamos os batons roxos por outros de coloração de um vermelho bem intenso. Então, esses beijos caóticos que se formavam eram vermelhos e os anteriores eram todos negros. Novamente vemos aqui aquela ideia que traz a condição de solteiro em processo de morte, de mutação para uma outra condição de existência.

Apesar de tudo, era uma festa de casamento que até tinha duas “noivetes” (garçons crossdressers). Os dois estavam travestidos com vestido tipo de casamento, e serviam doces – beijinhos, por conta do contexto da exposição, e bem-casados, por ser doce típico de casamento –, além de limonada do deserto.

Enfim, após a performance, que durou mais ou menos duas horas, o elemento que apresentava a transitoriedade entre a data da performance e a data da assinatura do contrato de casamento no cartório é a marca do batom. Detalhe, todos os batons utilizados na performance tinham duração de 24 horas. Além de estarmos então com o borrão na cara por termos beijado muito a parede, tínhamos também nossos narizes esfolados.

 

JOSÉ CARLOS HENRIQUE: O seu trabalho Eu Gisberta foi um dos selecionados pela diretora Bia Lessa para a exposição “Maria de Todos Nós”, em homenagem aos 50 anos de carreira da cantora Maria Bethânia, que acontece no Paço Imperial no Rio de Janeiro e que vai até o dia 13 de setembro de 2015. O que o inspirou a retratar Gisberta e sua história? A música Balada de Gisberta, de Pedro Abrunhosa, interpretada por Maria Bethânia, foi uma boa fonte de inspiração? Qual a importância desse trabalho em particular em sua carreira?

 

PAULO AURELIANO DA MATA: Fato: “És bandido?”, foi o que ouvi de um transeunte na rua no dia 30 de maio de 2015 antes de chegar ao Espaço MIRA (Porto, Portugal) para uma conversa programada entre Tales e eu, na qual o mediador Silvestre Pestana incluiu o curador José Maia e o público geral para debatermos o conteúdo da nossa exposição (Tra)Vestir um Fa(c)to, ocorrida entre maio e junho deste mesmo ano. Quase no final desse encontro, a artista portuguesa Celeste Cerqueira disse: “é um nome que transporta tanta coisa com ele. Transporta emigração. Transporta o colonialismo. Transporta a degradação. Transporta o isolamento. Transporta em si a negação. Porque foi um processo – pelo que foi dado a conhecer – de decadência. Tal decadência foi por causa do corpo e dos bons costumes pelos quais dizemos ser todos tolerantes. E, de repente, é dada uma notícia com a qual não sabemos lidar. Porque descobrimos que somos intolerantes. Uma correção: ficamos todos contentes que tenham sido crianças, não fomos nós [adultos], foram crianças, que não foram conscientes de um ato tão agressivo. É um espelho de nós mesmos que nos recusamos a ver e, por isso, continuamos a colocar uma cortina nesse espelho, negamos nosso reflexo. E, de repente, existe alguém que coloca em si próprio o nome de uma pessoa na face – que não é um nome pessoal, como o da mãe. O problema é o da tal nomeação, nome que é muito maior que o nome. E acho uma atitude verdadeiramente impressionante ter esse nome na face, acho que é um ato de tal modo corajoso, que a performance, para mim, é o auge do que tu fizeste e o que incomoda é o tempo que ela permanece em ti” [transcrição direta].

Fato: Dentre os inúmeros artigos da época, havia um com o título “Hoje o País ‘Vê-se ao Espelho’” (Jornal Público, 25 de fevereiro de 2006). Sabemos que a vida reconhecível de Gisberta foi somente a tatuada pelo tempo em que viveu na cidade do Porto, primeiro como estrela em cabarés e boates gays, imitando a cantora Daniela Mercury, depois como um fantasma demasiado presente por conta de uma história de violência e transfobia. Sabemos também que Gisberta nasceu em 5 de setembro de 1960, em São Paulo.

Fato: Um terrível assassinato configurado como crime de ódio; uma terrível omissão da componente sexual e transfóbica; uma terrível tentativa midiática e política de desculpabilização do crime em si; uma terrível tentativa da Igreja Católica em associar o caso à pedofilia; uma terrível omissão da componente “ódio” na morte de uma pessoa que acumulava tantas exclusões sociais; uma terrível tentativa de culpabilização da vítima e de “abafamento” público.

Fato: João Paulo, do Portal GLBT de Portugal (PortugalGay.pt), afirmou, em entrevista ao Jornal Nacional TVI, no dia 23 de fevereiro de 2008: “as transexuais que trabalham na rua não deixaram de ser agredidas com sacos de óleo queimado, com extintores de pó químicos […]. E até aparecer mais uma vítima fatal, vamos continuar a ignorar as Gisbertas que andam por aí”.

Todos esses fatos, entre inúmeros outros que poderia mencionar, fazem parte do universo da série Eu Gisberta. O que está na exposição da Bethânia é somente o ponto de partida. É como um título e um manifesto que dá início ao projeto do filme Eu Gisberta que estou começando a criar.

Eu e a Gisberta temos aparentemente algumas coisas em comum. Por exemplo, quando eu era criança, uma das coisas que adorava fazer era dublar as músicas da Daniela Mercury no último volume na casa da minha avó materna. Transformava sempre o sofá da sala da casa dela numa espécie de palco, onde eu podia cantar e dançar todo aquele batuque. Era uma liberdade total do meu corpo nas vibrações daquelas músicas. Era suor, rouquidão e felicidade. Acho que isso é total “fazer a Gisberta” que proponho no texto da obra inicial da série.

Muitas vezes, achamos que somos livres para fazermos o que quisermos com nossos corpos, mas nem sempre é assim. A liberdade dos nossos corpos custa caro a cada um de nós. Minhas pernas, por exemplo, já foram censuradas num colégio por uma diretora que me proibiu de frequentar as aulas com calções, onde todos podiam, menos eu.

Retratar a Gisberta no meu trabalho não é só querer resgatar o trágico assassinato e os péssimos desdobramentos do caso, mas procurar dar voz à invisibilidade dos sentimentos de Gisberta. Quero com isso criar uma história de amor, de vivência de Gisberta no mundo. Para isso, quero mesclar acontecimentos pessoais meus com o que sei da história real da Gisberta. Por isso, a série se chama Eu Gisberta. Alberto Pimenta, em Indulgência Plenária, escreve sobre Gisberta: “E as tuas unhas / e a tua língua / iam passando / iam-se fixando / arranhando / camada sobre camada / a cama doutros corpos / Aliados e concorrentes / reconhecidos velhos / e conhecidos novos / E / sendo também arranhada por eles / e gostando mais de o ser no corpo / que no Espírito / que conservaste intacto e sem malícia / Inatingível / a tudo e a todos” (Lisboa: editora &etc, 2007, p. 13-14). Isso é o que procuro retratar: uma possível Gisberta que vive, que sente, que possui afetos e é humana.

É claro que tudo isso começou quando alguém do meu mestrado me contou muito por cima da triste história “do travesti do Campo 24 de Agosto”. Então fui pesquisar essa história. Já conhecia a versão da música Balada de Gisberta interpretada por Maria Bethânia, mas nunca tinha pensado no que estava por detrás dessa música. Então, depois de ler algumas coisas a respeito da morte da transexual do Campo 24 de Agosto, resolvi escutar a música novamente, mas prestando total atenção à letra. Lágrimas e lágrimas e mais lágrimas ao imaginá-la viva e sozinha com toda aquela dor dentro da escuridão do poço em que foi arremessada. Outra música do Pedro Abrunhosa interpretada por Maria Bethânia que me inspirou também é Quem Me Leva os Meus Fantasmas. “De que serve ter o mapa se o fim está traçado / De que serve a terra à vista se o barco está parado / De que serve ter a chave se a porta está aberta / Pra que servem as palavras se a casa está deserta”.

 

Eu Gisberta, de Paulo Aureliano da Mata na exposição coletiva Múltiplas Perspectivas e não menos Contradições e Sonhos, com curadoria de José Maia. I Bienal da Maia: Lugares de Viagem, 2015. Maia, Portugal. Fotografia de Tales Frey

 

Escrevi no meu diário: “estou preparando uma fonte para tatuar o nome ‘Gisberta’. Fico pensando: ‘tatuei o nome de um idiota na adolescência que não mereceu’. Tatuar seu nome é como criar um pacto de amor, uma foda perfeita. Essa tatuagem evocará a visibilidade de sua invisibilidade”. Então, resolvi tatuar o nome “Gisberta” no rosto. Como vemos no registro fotográfico que está na exposição, meu olho direito fechado é como se fosse um túmulo e o nome dela fosse a lápide desse túmulo. Assim, “os estados de espírito, as lembranças, os pensamentos, os objetivos, os afetos e os desafetos sempre estão imbuídos e sempre se imbuem nas marcas corporais. O corpo aqui é o receptáculo e o propagador do que se passa na alma e na mente” (PIRES, Beatriz Ferreira. O Corpo como Suporte da Arte: Piercing, Implante, Escarificação, Tatuagem. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2005, p. 25-26). Já o texto-manifesto, que faz parte também da obra na exposição, contextualiza a história de Gisberta e o caso de intolerância que vivi no primeiro ano do ensino médio em Goiás.

Em 2001, ainda morando na cidade de Inhumas, fui humilhado pela diretora do colégio que eu frequentava na frente de trinta e quatro alunos e um professor durante uma hora. AQUI DENTRO DO MEU COLÉGIO É PROIBIDO USAR CALCINHA COR DE ROSA. LÁ FORA, VOCÊ PODE USAR À VONTADE e NA SUA FICHA DE MATRÍCULA ESTÁ ESCRITO SEXO MASCULINO E NÃO PONTOS DE INTERROGAÇÃO, EXERÇA SUA FUNÇÃO, foi o que ela afirmou, entre outras coisas semelhantes. Eu termino essa história no texto-manifesto da seguinte forma: “Ela saiu. Eu levantei, pedi o celular emprestado para a loira e fui ligar para minha mãe, mas não consegui. Liguei para minha avó e não sei exatamente o que eu disse, mas foi algo do tipo: ‘Me tira daqui, não estou bem, não entendo o que está acontecendo’. Estava em choque, sem entender nada. Tentei correr dali, ir para casa, mas o exército da diretora-versão-feminina-de-Hitler trancou o único portão daquela prisão. Gritei tanto tentando fugir, mas as vozes do corredor aplaudiam o meu desespero”.

É muito importante destacar também a participação da obra Eu Gisberta na exposição coletiva Múltiplas Perspectivas e Não Menos Contradições e Sonhos do Momento II da I Bienal da Maia: Lugares de Viagem (Maia, Portugal). Agradeço imensamente ao curador José Maia pelo convite! Para mim, é muito significativo expor essa obra no norte de Portugal por conta de a história da Gisberta ter se passado justamente aqui.

 

JOSÉ CARLOS HENRIQUE: O texto que acompanha a obra Eu Gisberta é muito forte e tem um relato muito pessoal de uma experiência própria relacionada ao preconceito com relação à sexualidade em sua juventude. Como você enfrenta estas questões hoje? A arte lhe inspira a melhor superar eventuais atos preconceituosos em relação à sua pessoa?

 

PAULO AURELIANO DA MATA: A primeira lembrança que me veio à tona, através dessa sua pergunta, foi o trágico assassinato de cunho homofóbico de João Antônio Donati, conhecido carinhosamente como Joãozinho, em Inhumas. Apesar de o delegado responsável pela investigação ter descartado que o criminoso não tenha agido por homofobia e que não é homossexual, mesmo tendo tido algumas vezes relações com homens, esse caso me deixou estarrecido. Conheci o Joãozinho na minha pré-adolescência. Ele ainda era criança, morava na mesma rua que a minha avó materna e por vezes brincava com o meu primo. Apesar de eu ter me mudado de cidade e ele também, conversamos raríssimas vezes pela rede social ou pessoalmente quando eu e ele estávamos em Inhumas. Fiquei sabendo da sua morte ao ver a fotografia de seu corpo nas minhas atualizações do Facebook. Em choque, liguei para minha mãe para constatar se aquela notícia realmente era verdadeira. Sim, era verdadeira. Dor e lamento em várias camadas ao imaginar o sofrimento dele, da mãe dele, minha mãe no lugar da mãe dele e, por fim, eu sendo ele.

Apesar de ter superado, ter vivido grande parte da minha juventude em Inhumas foi muito cruel. Além da história narrada no texto-manifesto da obra Eu Gisberta e da censura de frequentar as aulas com calções, nesse mesmo colégio passei por inúmeros constrangimentos, como o roubo do meu diário e a história da pilha. Ao voltar do recreio, já na sala de aula, algumas meninas e alguns meninos euforicamente gritavam, de um lado para ou outro, alguns nomes de meninas e de meninos que eu havia beijado até então. Conclui, nesse ato, que haviam lido, em minha ausência e sem o meu consentimento, o diário que estava dentro da minha mochila. Fiquei tão chateado, mas a minha sorte é que a minha prima, que também era a minha professora de gramática, entrou na sala de aula, viu o que estava acontecendo e me defendeu da escrotidão daquelas pessoas. Em um outro momento, numa aula de química, eu estava sentado entre o M. – ele na minha frente – e a L. – ela atrás de mim. O professor havia entregue uma pilha alcalina para o primeiro aluno da fila examinar e passar para o aluno seguinte. Então, na minha vez, o M., que deveria me passar a pilha alcalina, me pulou. Levantou e deu a pilha para a L., alegando a ela ter me pulado por não querer ter contato físico com bicha.

É claro que o preconceito endereçado a mim não ocorreu somente no colégio na altura da minha juventude. Poderia dar o exemplo de inúmeros casos, mas não vejo necessidade disso aqui. Acho que estamos todos num mundo político em que certas forças e fatos trágicos estão em jogo, como, no momento, podemos observar a postura incorreta de muitos líderes europeus em relação aos refugiados sírios; a ascensão do Estado Islâmico e a destruição da memória através do aniquilamento de parte do patrimônio material e imaterial mundiais – por exemplo, a destruição do Templo de Bel, considerado o mais importante da cidade histórica de Palmira; o não respeito de alguns políticos neopentecostais pela democracia brasileira; os vários policiais que matam jovens negros em Baltimore; os direitos básicos aos quais transexuais e travestis não têm acesso… Simplesmente estamos testemunhando um “naufrágio da humanidade”, onde há certamente um grande abismo nos corações de muitas pessoas e é uma pena que o bom senso de grande parte dessa humanidade apenas dure uma atualização de estado no Facebook. Sou apenas uma pessoa comum que tenta perceber o fluxo do mundo e que está comprometida numa certa luta, na qual, de certo modo, sendo a mais imparcial possível, relativamente à verdade dos fatos, toma partido num plano, digamos, prático, ou seja, no meu alcance, com a arte.

 

NOTA

[1] Sobre Impressions d’Afrique, de Raymond Roussel, Marcel Duchamp escreveu: “Roussel foi o responsável pela construção de meu vidro La Mariée mise à nu par ses célibataires, même. Seu Impressions d’Afrique me indicou, em linhas gerais, a direção que eu devia seguir. Eu pensava, como pintor, que seria melhor para mim receber influências de um escritor que de um outro pintor.” (Cf. GLUSBERG, Jorge. A Arte da Performance. São Paulo: Perspectiva, 2011, p. 18).