Hilda de Paulo na exposição “Coração Travesti” nos apresenta uma inflexão transfeminista que atualiza e problematiza determinada concepção do universo feminino, atravessada por duas temporalidades: a da subjetividade e a da legibilidade social. Os “Sapatos” vermelhos de salto são as bases que sustentam vergalhões, um canteiro de obras onde se torna possível construir uma corpa em toda sua complexidade. A lata de alimento de preparo instantâneo da “Amante Ideal” apresenta uma releitura crítica da obra de Emília Nadal, “A Esposa Ideal” (1977), e elabora a leitura social e imediatista de corpas dissidentes de gênero. O poema de Hilda de Paulo alinhava as duas imagens-tempo com a pergunta sobre como se constrói o amor na vivência travesti. À corpa que os sapatos sustêm é dada a possibilidade de afeto e construção relacional dentro de sociedades cisheteronormativas?
Ademais, Hilda de Paulo reverencia os escritos de Camila Sosa Villada em “O Parque das Irmãs Magníficas”, expondo no projeto Kubikulo, da Kubikgallery, seu coração travesti: “uma flor da selva, uma flor inchada de veneno, vermelha, as pétalas de carne.” Essa flor de carne exposta indaga às passantes: se somos ficções políticas encarnadas, se o gênero é construção social, se antes de ser, estamos; posso eu também existir? O coração travesti vinga, na dupla acepção da palavra: sobrevive e cobra reparação. Que possamos ouvir a percussão desse coração que vibra, vive, sente e generosamente nos recorda que estamos todas nos construindo no canteiro de obras que é o corpo no mundo.
Maíra Freitas
artista, curadora e pesquisadora
OBRAS
1) Hilda de Paulo, Fragmento do poema A Solidão da Guerrilheira Travesty Incendiária, 2022. Intervenção em parede, 114 x 84 cm.
2) Hilda de Paulo, Hilda de Paulo (Sapatos), 2021. Objeto-pintura, 58 x 120 x 120 cm.
3) Hilda de Paulo, A Amante Ideal (Depois de Emília Nadal), 2021. Objeto, 30 x 16 cm aprox.
FICHA TÉCNICA
Hilda de Paulo: Coração Travesti | Projeto Kubikulo, Kubikgallery, Porto, Portugal | Texto: Maíra Freitas | Mural Caligráfico: Giuliane Sampaio/Cabe Letra Aqui | Montagem: Tales Frey | Agradecimentos: Giuliane Sampaio, Igor Vidor, Jaime Lauriano e Tales Frey | 2 de abril a 18 de junho de 2022
A Amante Ideal (Depois de Emília Nadal) (2021), Hilda de Paulo (Sapatos) (2021) e fragmento do poema A Solidão da Guerrilheira Travesty Incendiária (2022), ambas obras de Hilda de Paulo, na exposição Coração Travesti. Projeto KUBIKULO, Kubikgallery, Porto, Portugal. Fotografias de Kubikgallery
Poema
A SOLIDÃO DA GUERRILHEIRA TRAVESTY INCENDIÁRIA
Hilda de Paulo / Março de 2022
I.
Eu
Eu estou tão ferida
Que tudo
Tem mais intensidade
Porque aprendi
A caminhar sozinha
A entender o mundo do jeito que consigo
A cuidar das minhas dores e feridas
A conviver com a solidão
Porque preciso do meu silêncio
Para poder sofrer
E morrer
Para depois renascer
E seguir
Porque aprendi
Não por vontade própria
Talvez por proteção
Pra não me machucar mais do que deveria
Por ser a última escolha
Ou não ser escolhida
Porque aprendi que passo
Por um processo seletivo diário
Pela norma imposta
Por nossa sociedade
Vista apenas
Para ser
Apontada
Julgada
Xingada
E morta
Não porque não existo “além de”
Ou porque não estou no seu lugar de convívio
Que já é algo a se pensar
II.
Porque
Eu existo
Em solidão
Ao tornar um abismo
Atravessado de memórias incertas
As lembranças que carrego
Antes mesmo da transição
Comendo bolo de banana com passas
Em sua casa
Mas agora sou mais “consumida” com medo
Do que amada
Por você
E o mundo solitário
Tomou-me de tal forma
Que evito pensar em desistir da vida
Porque o seu afeto
É um prato
Que amanhece
Cheio
Mas o desejo
Pelo meu corpo
É um copo
Que anoitece
Seco e vazio
Na solidão
Porque
Ainda assim
Jurei a mim mesma
Que não vou morrer
Porque viver
É a minha maior vingança
Mesmo sabendo
Que o amor
Escolhe
Prefere
E exclui