“Notas sobre a palestra-performance-oficina ‘O que vem depois da esperança?’”, de Maíra Freitas (2022)

 

Este texto de Maíra Freitas foi publicado em: FREITAS, Maíra. “Notas sobre a palestra-performance-oficina ‘O que vem depois da esperança?’”. O Que Vem Depois da Esperança?: Brochura. Porto, Portugal: [s.n.], Teatro Universitário do Porto / mala voadora, 2022.

 

É preciso ter esperança, mas ter esperança do verbo esperançar. Porque tem gente que tem esperança do verbo esperar. E esperança do verbo esperar não é esperança, é espera. Esperançar é se levantar, esperançar é ir atrás, esperançar é construir, esperançar é não desistir! Esperançar é levar adiante, esperançar é juntar-se com outros para fazer de outro modo. — Paulo Freire

 

A palestra-performance-oficina, com direção e dramaturgia da artista brasileira Hilda de Paulo, corporificada pelo elenco do Teatro Universitário do Porto, lança uma pergunta perturbadora: o que vem depois da esperança? Perturbadora por ser uma oferenda dada com espelho que devolve a nossa justa imagem de sociedade pretensamente democrática onde somente alguns têm garantidos seus direitos civis e políticos, onde nem todas somos cidadãs.

Escrevo daqui, do Brasil, terra onde tudo que se planta dá: desigualdade social; genocídio do povo negro e indígena; índices recordes de transfeminício; fome; um estupro oficialmente reportado a cada dez minutos – sendo três deles de crianças e vulneráveis; desmatamento galopante; agrotóxicos em todas as mesas; corrupção. E, também, brota nessa terra resistência, coletividade, aquilombamento, queerlombismo, essas ervas que a colonialidade do poder teima em chamar de daninhas e que aprendemos a cultivar desde que as primeiras caravelas chegaram. O Brasil espoliado de ontem entrega generosamente mentes brilhantes para o Portugal de hoje, há que se reconhecer os saberes do sul global que lutam diariamente por espaços de visibilidade no Velho Mundo contemporâneo. Há que se interromper o epistemicídio que vigora desde o período colonial.

Penso que a esperança nasce do medo, da injustiça e da violência. De um gesto transgressor em meio à espera por tempos melhores, por um outubro em brasa vermelha, por uma terra outra que se faça aqui nesse mesmo chão. A esperança ganha corpo com palavra, a palavra é pensamento corporificado e de banal não possui nada. Nomear personalidades invisibilizadas, contar suas histórias, dar a ver a intelectualidade e saberes de uma comunidade estruturalmente colocada como subalterna. “Nomear a norma[2], aquele lugar ocupado como verdadeiro, imarcável, suposto grau zero da existência humana a quem tudo pertence e todas as estruturas do Estado se voltam para proteger e manter vivo. Nomear a cisgeneridade [3], aqueles sujeitos que ocupam um lugar de identificação e/ou obediência ao gênero que lhes foi atribuído ao nascer a partir da leitura biológica e genitalocêntrica, nos termos de Lara Crespo. Nomear os transfóbicos, nomear os masculinistas, nomear os racistas, nomear os xenofóbicos. Essas nomeações fazem parte do processo de semeadura por terras onde violências cisheteronormativas (aquelas imputadas à corpas que não obecedem às normas de gênero e sexualidade) não encontrem terreno fértil e morram à míngua de suas próprias covardias.

O texto dramatúrgico de Hilda de Paulo e Ave Terrena abandona a espera e se vale da esperança enquanto ato, como nos ensinou Paulo Freire, o patrono da educação brasileira que na atualidade política de nossa terra é alvo de escárnio e desprezo. O ato de contar estórias sobre aquelas que foram arrancadas da História é gesto de coragem e reparação. É marcar a importância da representatividade, com artistas dissidentes de gênero dando voz e corpo a personagens que partilham de seus marcadores identitários, combatendo diretamente o transfake – termo cunhado pela atriz brasileira Renata Carvalho, em aproximação ao termo blackface.

E, talvez, o desejo maior dessas corpas falantes que estiveram no palco seja o de construir democracia para todes a partir da educação. Se o Teatro Experimental do Negro, fundado pelo teórico, artista e político afrobrasileiro Abdias Nascimento em 1944, partiu do desejo de alfabetizar, capacitar profissionalmente e fomentar crítica social, também há em “O que vem depois da esperança?” o desejo de partilhar conhecimento através das artes do corpo, cumprindo o projeto político-pedagógico sonhado por Paul Preciado com as multidões queer.

Educar para levantar corpos e mentes derrubados pelo coma ciscolonial, aquele que a colonialidade do poder criou: lastro normativo e repressivo do período colonial que impera nos arranjos políticos e societários pelo sistema-mundo afora e que ensinou formas de ser restritas às experiências generificadas. É preciso desnaturalizar a cultura, entender seu contorno arranjado, fabulado, fabricado e que somente se coloca como norma aquela – a cultura – que teve ou tem poder de dominar e corrigir qualquer traço de desvio da norma.

Eu, mulher-cisgênera-brasileira-parda-mãe-solo-lésbica-trabalhadora-da-arte-e-da-educação, precisei me educar para compreender que os marcadores sociais da diferença [4] contornam e limitam a trajetória, os acessos, as possibilidades de uma vida plena em direito. Enquanto mulher cisgênera me vejo diretamente implicada com o caráter educativo da palestra-performance-oficina “O que vem depois da esperança?”, sou aluna. E agradeço à chance de conhecer, doze anos depois de partir de Portugal, algumas das biografias de pessoas trans que viveram no chão daí.

Agradeço também a partilha de saberes sobre a vida como impermanência e fazimento de si, à palestra- performance-oficina que ocupa o espaço com vozes e palavras e corpas, um gesto de revolta à invisibilidade que nos convoca a assumirmos todes a responsabilidade pela produção de gênero. “O que vem depois da esperança?” espelha quem não se olha e pergunta do trivial ao complexo da questão: “Aqui, na cidade do Porto, quantas pessoas TRANS*, travestis, já te atenderam na Farmácia Barreiros?”. Ganhamos um convite a olharmos a cisnormatividade com estranhamento até estranharmos a nós mesmas e reparar os absurdos sociais que se colocam como naturais.

“O que vem depois da esperança?” é uma horta cheia de sementes generosamente plantadas, que saibamos cultivar e multiplicar território onde democracia signifique direito à vida digna para toda corpa. O que se encontra depois da esperança não é terra situada após o cabo, é corpo. E corpo não é território para grileiros se apossarem.

 

NOTAS

[1] Maíra Freitas (1985, Campinas-SP, Brasil) é artista, pesquisadora, curadora e arte-educadora. Também mulher cisgênera, parda, lésbica e mãe solo. Sua pesquisa poética parte do desejo de criticizar as relações entre cultura e natureza e desdobra-se em múltiplas linguagens, passando pela arte do vídeo, fotografia, pintura expandida, instalação e arte têxtil. Doutoranda em Artes Visuais (Unicamp), dedica-se ao estudo das artes do vídeo e suas relações com gênero, sexualidade e racialidade.

[2] “Nomear a norma” é a primeira lição da artista e teórica brasileira Jota Mombaça em seu fundamental texto “Rumo a uma redistribuição desobediente de gênero e anticolonial da violência!”.

[3] Para aprofundar a compreensão sobre a categoria cisgeneridade, as produções teóricas da pesquisadora em linguística Beatriz Pagliarini Bagagli são fundamentais.

[4] Para aprofundar estudos sobre diferença – conceito de base filosófica derridiano – e identidade, os estudos das teóricas brasileiras Guacira Lopes Louro e Tomaz Tadeu da Silva são grandes contributos.