Este texto de Daniela Labra foi publicado em: LABRA, Daniela. Em Posições de Dança: Folheto. Rio de Janeiro: [s.n.], Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, 2019.
Na época da criação deste texto, Hilda de Paulo ainda era conhecida por Paulo Aureliano da Mata. A artista começou sua transição de gênero em 2020, mudando de nome nesse mesmo ano.
Em Posições de Dança ou Convite Para uma Dança-Interação
Brasileiros radicados na cidade do Porto, Portugal, Paulo Aureliano da Mata e Tales Frey realizam uma vida-obra em parceria desde 2006. Fundadores da Cia. Excessos e da eRevista Performatus, criam projetos em dupla ou solo, como artistas visuais, performers, curadores, teóricos, encenadores, pesquisadores e produtores, entre outras atividades. Seu trabalho teórico-prático possui marcadamente um viés conceitual, de caráter performático e teatral, que explora questões relacionais e de afetos, tanto para pensar a coletividade como a intimidade entre corpos e sujeitos. A reunião de suas formações sustenta um contexto transdisciplinar de criação que atravessa as belas artes, história da arte, artes cênicas, moda, filosofia e artes do corpo, incluindo a dança, e que toma a performatividade ou o elemento performativo como um ponto de evidência e investigação artística constante. Sem cessar, experimentam os mais diversos suportes como fotografia, vídeo, escultura, desenho, texto, tatuagem, indumentária, site-specific, e outros, mantendo o corpo em performance sempre presente enquanto tema, ideia, sugestão ou forma.
As peças-proposições desta mostra extrapolam definições e rótulos, sendo organizadas no espaço da instituição como dois atos: Sala dos Sapatos e Sala dos Indumentos. Na primeira, o objeto para performance de Tales Frey, “O Corpo Nunca Existe em Si Mesmo – Variante I”, composto por cinco pares de sapatos adaptados para uso coletivo, e a videoperformance “Estar a Par – Passo a Passo”, também de Frey, evocam coreografia, sincronicidade e ritmo, chamando o público a tomar parte da dança-obra pelo espaço, o tempo todo, assinalando que a galeria é arena livre para experimentar o trejeito corporal que ali começa induzido pelos trabalhos. A performance, compreendida como uma arte do corpo e da presencialidade que propõe ação e relação, convoca à ativação dos elementos inertes dispostos. Assim, pelas mãos dos artistas e sobretudo do espectador-ativador, indumentos originais promovem aproximação física, movimentos coletivos e bailados espontâneos, enquanto transmutam os tecidos em formas escultóricas.
Embora as pesquisas dos dois artistas sejam convergentes em termos temáticos, percebe-se algumas diferenças formais. Enquanto Tales Frey investiga a potência do gesto forçadamente contido dentro ou fora de invólucros ou estruturas, sendo fiel à monocromia e austeridade das cores preta e branca, Paulo Aureliano da Mata explora o gesto largo, cores vibrantes e uma presença corpórea mais histriônica. É dele o letreiro que recebe frontalmente o visitante, e exige o direito de viver nossos corpos e desejos livremente, como numa dança instintiva: “Se não puder também dançar, esta não é a minha revolução”. Além desta obra, uma instalação com diversos objetos e dois vídeos de certa forma homenageiam uma grande inspiração para o artista, a dançarina norte-americana Loïe Fuller (Illinois, 1862 – Paris, 1928), criadora da “Dança Serpentina” (Serpentine Dance), uma coreografia esfuziante e vanguardista na qual vestidos largos e leves de seda em movimento, iluminados por luzes coloridas, evoluíam nos palcos produzindo efeitos visuais e formais revolucionários.
A exposição traz ainda mais três objetos-proposições de Tales Frey: “Conjunto Sensível”, “Ponto Comum” e “Penetras”. Esta última, que não está disponível para ser manipulada, é uma irônica incitação à transgressão. Como o curioso título sugere, trata-se de uma indumentária feita para três pessoas se tornarem um só corpo, o que permitiria a entrada de um trio em locais onde apenas um indivíduo teria acesso, seja uma festa, o transporte público, um evento privado, o cinema…
“Em Posições de Dança” se traduz na vontade artística de tornar o visitante um agente ativador da mostra. É apenas com o uso das peças que a experiência será completa. Como Parangolés do Século XXI, os indumentos convocam à evolução do gesto lúdico, ressignificando tanto a veste como o próprio ato de vestir um invólucro para o corpo e, a partir dele, criar formas com a finalidade de viver a obra em si. Fique à vontade.
Daniela Labra
curadora