“Há um Brasil a fazer perguntas difíceis a Portugal”, de Mariana Duarte (2021)

 

Este texto de Mariana Duarte foi publicado em: DUARTE, Mariana. “Há um Brasil a fazer perguntas difíceis a PortugalÍpsilon. Jornal Público, ed. 11.242, p. 2-8, 5 de fevereiro de 2021.

 

Não há dados que nos digam quantos artistas existem entre os pelo menos 151 mil brasileiros que vivem em Portugal, segundo os números oficiais com certeza já desactualizados, do último Relatório de Imigração, Fronteiras e Asilo do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), divulgado no ano passado e referente a 2019. Mas podemos dizer que são muitos, arriscamos que nunca foram tantos. Entre a maior comunidade imigrante em Portugal encontram-se músicos, artistas visuais, performers, actores, coreógrafos, DJs, cineastas, escritores, artistas transdisciplinares, arte-educadores, produtores culturais, curadores, editores, investigadores que ligam a actividade artística à academia e à produção de pensamento.

“Temos percebido que muitos artistas brasileiros têm vindo para cá”, assinala Cyntia de Paula, presidente da Casa do Brasil, associação sem fins lucrativos sediada em Lisboa que trabalha na área dos direitos das comunidades imigrantes. “Nos últimos cinco anos, desde o golpe contra Dilma Rousseff [em 2016], têm chegado imigrantes mais qualificados, de vários perfis e na faixa etária dos 30-40 anos, entre os quais artistas”, nota, referindo que a mais recente vaga migratória se acentuou em 2018 — coincidência ou não, o ano em que Jair Bolsonaro foi eleito presidente do Brasil, aprofundando o abismo social e económico que já estava em curso no país, incluindo o desinvestimento na cultura, com a qual o actual governo tem uma relação, no mínimo, bélica.

Contudo, e por mais sedutora que pareça a ideia de que há um tropel de criadores brasileiros a mudarem-se para Portugal para fugir a Bolsonaro, a verdade é que não podemos reduzir estes fluxos a um único período temporal, a uma só motivação, a um perfil uniforme. Os artistas com quem o Ípsilon falou chegaram a Portugal pré e durante Bolsonaro, pré e pós-Temer, alguns deles ainda nos “anos dourados” de Lula da Silva. Muitos vieram para dar seguimento a relacionamentos amorosos, outros para estudar e trabalhar noutros contextos. Atravessam diferentes classes sociais, territórios geográficos, percursos pessoais e colectivos, bem como uma pluralidade de práticas artísticas.

“A cultura brasileira, enquanto parte de um extenso e diverso território, traz consigo múltiplas características e expressões presentes na música, na dança, nas artes visuais, no cinema, nas telenovelas, na gastronomia, na literatura, na produção científica, na religião, no vocabulário, que, somadas às diversas trajectórias, etnias, e à desigualdade social e ancestralidade do povo brasileiro, compõem a nossa diversidade cultural”, resume Puta da Silva, artista multidisciplinar que se mudou para Lisboa em 2017 para tirar o mestrado em Teatro na Escola Superior de Teatro e Cinema. Neste momento, está a trabalhar no seu primeiro álbum, EPI Travesti, uma “saga audiovisual” que irá desenrolar-se ao longo de 2021.

Apesar dos diferentes perfis dos criadores que se encontram nestas páginas, uma coisa une a maioria: directa ou indirectamente, fazem arte politizada. Nos seus trabalhos, integram, desconstroem e desestabilizam reflexões sobre questões de género, sexualidade, vivências LGBTI, a cultura afro-brasileira, a violência contra mulheres, a história do Brasil, as desigualdades sociais, o racismo, o colonialismo; temas em que o debate público e a produção de pensamento no Brasil estão a anos-luz de Portugal (basta entrar numa livraria em São Paulo para perceber as diferenças). Para muitos destes artistas, estar em território português não é como estar noutro sítio qualquer. Afinal, Portugal invadiu e colonizou o Brasil, liderando um processo, ao longo de quatro séculos, de tráfico negreiro, escravatura, genocídio e saque, o que marcou, definitivamente, a moldura do Brasil contemporâneo.

“Na medida em que as interacções entre Brasil e Portugal projectam um debate pós-colonial, isso implica necessariamente uma politização [de artistas brasileiros cá residentes]”, afirma Marta Mestre, curadora portuguesa que trabalha entre Portugal e Brasil desde 2010, actualmente no cargo de curadora-geral do Centro Internacional de Artes José de Guimarães (CIAJG). “Fora deste debate existirão artistas cujo trabalho não incorre nesta problemática”, ressalva. No caso dos criadores aqui em foco, o peso e a complexidade das relações históricas entre os dois países implicam os seus corpos e as suas subjectividades, ainda que de modos distintos e nem sempre confluentes.

Isso fica evidente numa altura em que Portugal começa a despertar, a muito custo, para o debate sobre colonização, e todas as estruturas racistas que daí emergiram, e sobre descolonização. A discussão, ainda que embrionária, tem ganho cada vez mais repercussão no circuito cultural português, inclusive nas programações e curadorias. “Tenho a percepção que debates em curso em museus brasileiros como o MASP, a Pinacoteca e o MAM-Rio vão tendo ecos aqui”, partilha Marta Mestre. Segundo Tales Frey e Hilda de Paulo, casal de artistas visuais e da performance imigrados há 13 anos, a presença crescente de artistas brasileiros, muitos deles emergentes, tem contribuído “significativamente” para acelerar o debate público sobre esses temas. E, à boleia, para provocar algumas alterações no panorama artístico.

“Os artistas brasileiros sempre exercitaram uma resposta directa à realidade de seus contextos de grandes tensões sociopolíticas, e estas estão relacionadas com os processos coloniais”, consideram os criadores, que no pré-confinamento tinham acabado de inaugurar duas exposições individuais no CAAA — Centro para os Assuntos da Arte e Arquitectura, em Guimarães (Entre a Tensão e o Delírio, de Tales Frey, e Princesinha do Cerrado, de Hilda de Paulo, que terá um programa paralelo online a partir deste sábado). “Essa intensa diáspora coloca Portugal em contacto com discursos que sujeitam todos os envolvidos a uma revisão crítica das suas próprias histórias sob uma perspectiva agora descolonial.”

Dori Nigro, criador, performer e arte-educador nordestino a morar no Porto desde 2013, reforça que a “arte brasileira é uma arte fincada em questões sociais e políticas”. Fala das movimentações, no Porto, de artistas do Nordeste brasileiro, uma região que “durante anos resistiu nas margens, fora do eixo legitimador da arte Rio de Janeiro-São Paulo”. “Para situar as contribuições desses artistas é necessário mencionar as interseccionalidades que esses corpos trazem para o cenário artístico português: são corpos negros, não-binários, marginalizados e nordestinos. Corpos que, ao trazerem temas desconfortáveis para um circuito confortável, criam fracturas, questionam e desestabilizam o estado das coisas e inscrevem novas narrativas.” Dori Nigro é um dos nomes que integram a mostra online O Mundo que nos Vê, uma exposição do Espaço Mira com criadores portugueses e brasileiros que decorre até 28 de Fevereiro, aos sábados e domingos. Paralelamente, está em residência com o projecto NKISI, uma investigação em teatro e dança, liderada por Gil Mac, que dialoga com a colecção de arte africana do CIAJG.

 

Avanços e recuos

Chegado a Portugal em 2019, Jaime Lauriano, artista visual com carreira já consolidada a nível internacional, queria auscultar, in loco, como é que a colonização portuguesa do Brasil — a sua principal matéria de trabalho, a par do período da ditadura militar brasileira — era aqui percepcionada e “como isso influenciava a sociabilidade e a auto-estima dos portugueses”. Percebeu que Portugal estava “em negação”, “muito por causa de uma questão de auto-estima”. “Mesmo pessoas mais esclarecidas acham que quando se fala dos impactos da colonização está-se falando daquela pessoa e não de processos históricos e de um Estado-nação. A crítica é levada para o lado pessoal.”

Para Lauriano, um dos criadores seleccionados para ocupar os novos Ateliers Municipais do Porto, este tipo de posicionamento reflecte a relação histórica particularmente “esquizofrénica” e “tensa” entre Portugal e Brasil. É mais “complexa” do que com as outras ex-colónias portuguesas, considera, devido às “múltiplas camadas”. “Por um lado, o Brasil ganhou superioridade económica, geopolítica e cultural em relação a Portugal, é visto como um destino paradisíaco de férias e tem lá muitos emigrantes portugueses. Por outro lado, aqui tem a xenofobia e o racismo contra brasileiros, mas a imigração brasileira cá é mais branca do que negra, então não fica tão evidente o racismo de tom de pele como fica com pessoas das outras ex-colónias. Acho que isso também é importante para a questão da negação: Portugal não vê o Brasil como parte da comunidade afro-diaspórica.”

A dificuldade em cortar o cordão umbilical do saudosismo imperialista está muito presente a nível institucional, aponta o artista. Como se vê, por exemplo, pelo recente programa de apoios da Direcção Regional de Cultura do Norte, onde se exaltam “as descobertas portuguesas” (como se o território brasileiro não existisse antes de os portugueses lá terem chegado), ou o projecto da Câmara do Porto para a instalação de um memorial aos combatentes do “Ultramar”, utilizando o eufemismo fascista para a Guerra Colonial, um dos períodos da história portuguesa que não deveriam ser celebrados. Tudo isto é “sintomático” de como “não se quer tocar na ferida e incomodar”.

Ainda assim, Jaime Lauriano consegue sinalizar “pequenos pontos de ruptura”. Destaca o diálogo e a acção sincronizadas entre movimentos sociais e a cultura, “à semelhança do que aconteceu no Brasil”, dando como exemplo o Memorial de Homenagem às Pessoas Escravizadas, em Lisboa, iniciativa que partiu da Djass — Associação de Afrodescendente e para a qual foi convidado (vale a pena relembrar que, em 2019, um conjunto de colectivos associados aos movimentos negros em Portugal promoveram um encontro com Conceição Evaristo, um dos nomes mais importantes da literatura brasileira). Frankão, aka O Gringo Sou Eu, músico e educador já há 11 anos em Portugal, assinala também o papel central que “artistas, estudantes e activistas brasileiros” têm tido no desbloquear desta conversa, por enquanto cheia avanços e recuos. “Temos percebido que tem chegado um grupo de imigrantes muito activo politicamente. Dentro dele cruzam-se artistas, académicos, estudantes e pessoas da área dos Direitos Humanos”, reforça Cyntia de Paula, da Casa do Brasil.

O trabalho de Jota Mombaça, que intersecta poesia, teoria crítica, estudos académicos e performance, tem dado alguns dos contributos mais importantes e clarividentes, a nível internacional, para ampliar e resignificar o debate decolonial. Mas também, paralelamente, para dissecar, sem paninhos quentes, os mecanismos coloniais e burgueses do circuito da arte, o mesmo que euforicamente se tem auto-congratulado pelos esforços, tantas vezes superficiais e interesseiros, de revisão histórica. Centrando-se em Portugal, onde vive desde 2017 (entre várias estadias em Berlim pelo meio), Jota Mombaça acredita que algumas coisas estão a mudar no panorama artístico. Em particular, “a emergência de pessoas que estão mais afinadas com um trabalho crítico em termos de racialidade” e que estão a confrontar “mais veementemente” o status quo, através do “questionamento da supremacia branca e dos princípios normativos que guiam a sociedade portuguesa e os cenários artísticos”.

Vários artistas brasileiros têm estado nesta frente, concorda Jota Mombaça, “mas não só”. “Esse trabalho tem a ver com um processo diaspórico mais amplo”, no qual se enquadram as relações entre as comunidades afrodescendentes portuguesas e artistas imigrantes. Apesar destas “emergências”, não acredita que já esteja em curso uma reconfiguração efectiva da estrutura hegemónica (em vários aspectos, o texto A coisa tá branca!, uma das primeiras bombas que Jota lançou para a cena portuguesa, continua actual). “Toda a vez que a cena artística afirma a localidade, ela afirma a herança colonial e tem pouca abertura para pensar os fluxos e as passagens que se estão dando aqui e que, muitas vezes, não têm espaço nos circuitos hegemónicos. Ou, então, é um espaço de tokenização.”

 

Política e poética

Nesse sentido, Marta Mestre refere que a “arte portuguesa dos séculos XX e XXI tem sido pensada maioritariamente dentro do contexto europeu e no interior das suas próprias premissas, sendo raramente especulada na relação com narrativas não-europeias.” Para a curadora, ainda se baseia “na ficção de que existe uma modernidade central, europeia e norte-americana e as suas periferias”. E acrescenta: “mesmo sabendo que existem trânsitos atlânticos, africanos e brasileiros de vários artistas e escritores, de Vieira da Silva a E.M.de Melo e Castro, insistimos num cânone europeizado, num padrão civilizatório normativo. Os museus nacionais portugueses não contam estas histórias no plural de forma estrutural, como acontece noutros países. Por exemplo, em Espanha, cite-se a acção do Reina Sofia e a sua programação, que tem em conta toda a relação colonial de Espanha com a América do Sul e que a interroga a partir do presente.”

Marta Mestre considera que a presença de artistas brasileiros no circuito de arte contemporânea nacional “tem sido regular”, mas diz faltar uma “formulação de sentidos narrativos pela crítica e pelo debate que permitam recontar a arte portuguesa também a partir dessas presenças”. Jota Mombaça vai mais a fundo na análise às curadorias e programações feitas em Portugal, problematizando a capitalização e o oportunismo das políticas de representatividade postas em prática. “As instituições ainda nos querem devolver para o lugar de coitada e do ‘dar voz’. Tudo parece ser metabolizado como se as instituições estivessem fazendo algo de bom, quando na verdade eu é que estou fazendo algo bom e elas é que beneficiam quando incorporam o meu trabalho”, observa a artista e escritora, que sempre recebeu mais convites para expor fora de Portugal do que dentro dele. “É uma ideia de benevolência que, na verdade, é uma reconfiguração da maldade. Essa inversão de perspectiva, no cenário português, ainda não se está dando.”

Isso traz à boleia uma outra problemática: a homogeneização da arte política, neste caso a dos artistas brasileiros em Portugal. “Nessa onda das instituições incorporarem temas decoloniais e sobre racismo e igualdade de género”, introduz Jota Mombaça, “há também uma redução da complexidade desses temas, das nossas obras e do que significa a nossa politização.” Essa complexidade, diz, “é a poética” inerente a cada criação, e vai além de posições identitárias. “Eu lembro-me de quando estava fazendo uma obra sobre o meu coração partido para um museu italiano e do movimento interno que tive de operar para me permitir fazer isso, porque eu estava negociando o tempo inteiro com esse lugar estereotipado da artista que só fala de temas políticos, macro, estruturais”, recorda Jota, que este ano, entre apresentações em Zurique, Nápoles e Berlim, vai inaugurar uma exposição individual em São Paulo, numa comissão da 34ª Bienal de São Paulo e do Centro Cultural São Paulo, sobre “ficar no escuro e conseguir orientar-se nele sem necessidade de luz”. Na sua produção artística recente, mostra como estas poéticas podem ser elaboradas e potencializadas através de formatos híbridos e mutantes, de espaços experimentais e vibracionais: é o caso do podcast La Leche Travesti, feito em parceria com Ikí Piña e Slim Soledad.

Dori Nigro fala também desse lugar de trincheira. “Às vezes quero fazer arte sem ter de falar de racismo, mas não tenho esse privilégio. Estou implicado nessa realidade. Por outro lado, as instituições e programadores vêem-me através desse lugar. Vejo-me em determinados espaços cumprindo uma falsa quota racial para responder a uma ideia ilegítima de descolonização”, conta o artista e performer. “O que fazemos vai além de uma identidade em que nos querem colocar.” A produção destes artistas é polifónica e polissémica, “tanto nas poéticas como nos enfoques discursivos”, acrescentam Tales Frey e Hilda de Paulo. “O sistema actual da arte em Portugal ainda insiste num velho molde de exoticizar o que não surge de dentro de um eixo hegemónico e, ao mesmo tempo, tenta higienizar estéticas de outros contextos para os moldes admitidos num pensamento colonizado e eurocêntrico (actualmente mais norte-américo-cêntrico), destruindo assim conhecimentos e culturas quando as tornam subprodutos homogeneizados para serem facilmente digeridos pela cultura branca ocidental.”

Todos os intervenientes defendem que, para se conseguir atingir um outro patamar discursivo e ético no panorama artístico português, é preciso levar a cabo uma reconfiguração profunda, a vários níveis: nos lugares de poder, no acesso a financiamentos públicos, nos valores dos cachets, nas práticas elitistas de programação e curadoria. E isso, na verdade, pode ser benéfico para qualquer artista que não faça parte de uma elite ou de um nicho bem posicionado, independentemente da sua nacionalidade. “A mudança passa pela programação e por quem ocupa os lugares de decisão. Temos de reflectir sobre as excepções e temos de falar sobre representatividade real”, analisa Dori Nigro. “A nossa visibilidade tem de tomar os mecanismos de representação. Quem são as curadoras pretas que estão trabalhando aqui?”, lança Jota Mombaça.

Por outro lado, Puta da Silva lembra que “a transfobia e o racismo sistémicos nas artes impossibilitam que muitos artistas tenham acesso à empregabilidade ou à aprovação em concursos”, sobretudo quando são imigrantes. “É preciso (re)inventar constantemente novos espaços para a realização artística imigrante.” Isso acaba por limitar muitos criadores a um circuito mais underground, onde a abertura a outras expressões e pluralidades pode ser maior, mas em que as condições materiais são ainda mais precárias, lembra Jota Mombaça.

Nas artes como em qualquer outra profissão, a imigração implica recorrentemente situações de precariedade acrescida. “Quando a gente fala em imigração, a gente fala muitas vezes de um processo que nos joga num limbo do não-ser, do não-existir, e há uma série de pormenores institucionais e burocráticos que nos vão impedir de acessar qualquer coisa, desde a saúde a um concurso público para artistas”, aprofunda Jota. “Como é que se atravessa essa barreira para depois encontrar uma outra barreira que tem a ver com as panelinhas, o circuito fechado, a repetição de nomes e de estruturas de poder? Há muita gente que se diz politizada e de esquerda mas, na verdade, são gatekeepers.” Tales Frey e Hilda de Paulo condenam especialmente “o clubinho” de júris e artistas que se vai formando em concursos públicos. “É muito chocante constatar que há pessoas a revezar posições numa rotatividade viciada e que chega a lembrar o modo como os títulos nobiliárquicos eram concedidos.”

A par de uma revisão ética, Marta Mestre sugere que se invista mais em programações “que produzam hipóteses sobre significados comuns, mesmo que em disputa, e que ampliem o campo de interacções da arte portuguesa para além do circuito europeu e norte-americano”. Foi isso que procurou fazer em Farsa, exposição no Sesc Pompeia, São Paulo, que reuniu 40 artistas do Brasil e de Portugal, entre os quais Jota Mombaça (há uma série de conteúdos online disponíveis em farsa.sescsp.org.br). Por cá, nos próximos meses, se a pandemia deixar, estão previstos momentos que juntam artistas dos dois países: é o caso de duas partes da exposição Poético ou Político?, no Maus Hábitos, com curadoria de Tales Frey, e do espectáculo Mina, de Carlota Lagido, com estreia prevista para Março no Teatro São Luiz.

Mas há mais. Com o objectivo de tentar mapear a comunidade brasileira no Porto, o artista e programador brasileiro Pedro Vilela está a preparar Travessia, um projecto co-produzido pela companhia Circolando e pela Câmara do Porto, agendado para Julho. A criação desta instalação performativa passará por recolher testemunhos de imigrantes dos mais variados perfis, “do artista ao estafeta do Uber Eats” (e é para os trabalhos precários da área dos serviços e do comércio que os imigrantes brasileiros mais são empurrados, diz a presidente da Casa do Brasil, Cyntia de Paula). Enquanto responsável, agora à distância, pelo festival de teatro TREMA!, no Recife, e enquanto curador da Central Eléctrica, espaço de criação e residências artísticas associado à Circolando, Vilela continuará a construir pontes PT-BR e a programar criadores brasileiros imigrantes (a bailarina e coreógrafa Luara Learth Moreira é um dos nomes para este ano).

De resto, e a olhar já para 2022, Jaime Lauriano tem nos planos trazer para Portugal a exposição Enciclopédia Negra, que inaugura em Abril na Pinacoteca do Estado de São Paulo e que parte do livro homónimo, com 600 páginas, em que o artista esteve a trabalhar nos últimos três anos juntamente com os historiadores Lilia Schwarcz e Flávio Gomes.

 

Além do samba

Desviando o foco das artes visuais e performativas para a música, há várias décadas que Portugal tem uma forte comunidade de músicos brasileiros. Mas se antes pouco se ouvia além de samba, forró, chorinho ou MPB, nos últimos anos o panorama tem vindo a diversificar-se com a vinda de músicos, produtores e DJs que trazem outras linguagens: do funk brasileiro ao rap, da electrónica à música indie. Frankão é um deles. Mais conhecido por O Gringo Sou Eu, este sambista-funkeiro-rapper chegou a Portugal em 2010, dando seguimento ao trabalho sociocultural que iniciou em Volta Redonda, cidade no interior do Rio de Janeiro. “Quando cheguei comecei a trabalhar com várias associações e em bairros e escolas de Famalicão, Matosinhos, Sintra e Lisboa”, conta. Favela 31, banda criada com jovens da comunidade cigana de Famalicão, é um dos seus projectos em curso.

Apesar das devidas diferenças, Frankão consegue traçar paralelismos entre as favelas onde trabalhou no Brasil e os bairros sociais de Portugal. “A gente vai cair sempre na mesma questão: as periferias nascem de povos que foram explorados. Faz tudo parte de um processo de exploração de mão-de-obra barata que continua se perpetuando”, diz, referindo ainda que a colonização do Brasil foi “um laboratório da exploração através da escravidão e do tráfico humano” (e ao longo da conversa repete que é preciso “dar um nome a este genocídio”, como se fez com o Holocausto).

Paralelamente ao trabalho como educador, Frankão é membro dos HHY & The Macumbas, banda capitaneada por Jonathan Uliel Saldanha, e co-fundador, juntamente com o compositor e poeta brasileiro Luca Argel, dos Samba sem Fronteiras. “Com o samba eu chego a todo o lado: às pessoas da elite, às pessoas do bairro.” Apesar de o samba continuar a ser a “linguagem mais transversal”, Frankão assinala que géneros como o baile funk estão a ganhar cada vez mais terreno em Portugal, numa altura em que a música “vinda das periferias está dominando o mundo” — e ainda bem, apesar dos efeitos colaterais da “máquina capitalista”. “Pobre cria e a elite se apropria.”

O funk, a par do trap, do grime, da electrónica e do rap de intervenção, é um dos vocabulários a que o artista recorre e que desconstrói em Sente o Peso, o seu novo álbum a solo na pele de O Gringo Sou Eu. Dividido em duas partes, é o disco em que Frankão se reconcilia com a sua espiritualidade e em que discorre, com acidez e lucidez, sobre temas políticos: do colonialismo à exploração de classe, passando pelas armadilhas da extrema-direita, à qual Portugal não está a conseguir escapar. “Em certa medida, a estratégia do Ventura é a mesma do Bolsonaro: é lançar merda para todo o lado e o pessoal, incluindo os media, ficam falando disso o tempo inteiro. A gente está caindo na mesma teia.”

Também com um novo projecto em mãos está Puta da Silva. EPI Travesti (ou seja, equipamento de protecção individual travesti) é o seu álbum de estreia, onde reúne e interpreta “narrativas seleccionadas” a partir das suas “vivências e encontros com pessoas transvestigéneres imigrantes em Lisboa.” O disco conta com “sete obras autorais” que estão a ser lançados espaçadamente. O primeiro capítulo, Bruxonas, saiu no ano passado; o segundo, Hetero Curioso, chega este mês. A cantora e actriz vai buscar o nome à expressão brasileira “estou puta da silva”, que “denota inquietação, euforia e braveza”. “Puta da Silva é mais do que um nome”, declara. “É o estado de uma multiartista afrotravesti, imigrante, trabalhadora.”

Bruxonas — com música produzida por Odete e videoclip fruto de um trabalho colectivo entre artistas imigrantes e portugueses — tem o calibre das criações musicais e performativas de Linn da Quebrada, com ecos de outras artistas brasileiras como Jup do Bairro, Ventura Profana ou Rosa Luz. O vídeo cruza elementos da cultura afro-brasileira, ancestral e contemporânea, ao mesmo tempo que questiona o lugar de um corpo negro, trans e imigrante em Lisboa. Puta da Silva é também uma das responsáveis pela Casa T, centro de acolhimento e sociabilização para pessoas trans, imigrantes e racializadas que procura dar resposta à actual crise habitacional e económica (é possível contribuir para a campanha de financiamento colectivo em www.gofundme.com/f/casa-t).

Ainda na música, e esquecendo por momentos a paralisação forçada pela pandemia, importa assinalar que o trânsito entre Portugal e Brasil tem-se intensificado nos últimos dois, três anos. Não só pela acção de produtores culturais brasileiros cá residentes, através da organização de concertos e festas (neste último ponto, destaque para as noites Bee.on The Beat, Viemos do Egyto, Kebraku e TODA), mas também por causa das programações atentas de espaços como o Musicbox (só em 2019 programaram cerca de 50 artistas brasileiros), B.Leza, Espelho d’Água, Maus Hábitos ou Valsa. “Sinto que nós nos ‘intrigamos’ enquanto nações com uma história difícil, mas muito próxima, e isso bate no criativo também”, diz LaBaq, cantora e compositora brasileira que se instalou em Leiria no início de 2020, estreitando “os laços” que já vinha a construir com Portugal há vários anos — em particular com a editora leiriense Omnichord Records, casa de nomes como Surma e First Breath After Coma, por onde lançou o seu último single, Abrandô.

Os “resultados trágicos e assustadores” das últimas eleições presidenciais no Brasil foram o “último empurrão” que precisava para atravessar o Atlântico. “Poder estar num país em que o governo não luta contra seu povo já é, por si só, algo que influencia no que crio e posso criar.” A compositora ainda não consegue identificar exactamente como é que o seu trabalho está a ser influenciado por este novo contexto, mas diz estar a “organizar” esses estímulos “para o que há-de vir”.

 

Ficção e realidade

A trajectória de Tatiana Salem Levy é ligeiramente diferente das restantes que aqui registamos. A escritora nasceu em Lisboa durante o exílio dos pais, fugidos à ditadura militar brasileira. Aos nove meses foi para o Rio de Janeiro. Já adulta, e casada com um português, mudou-se para Lisboa em 2013. Com uma obra de ficção que “parte de assuntos pessoais para falar sobre questões do Brasil”, reconhece o peso que a ditadura militar tem na sua escrita. “Eu passei a minha infância convivendo com amigos dos meus pais que lutaram contra a ditadura, que foram presos e torturados, então claro que isso é definitivo na minha formação.”

Mas os temas e as memórias que atravessam os livros desta autora multipremiada vão muito além daquilo que se passou entre 1964 e 1985 (e do muito que ficou para moldar “a história da violência” do Brasil de hoje, diria Jaime Lauriano). Por exemplo, em Paraíso (2016, Tinta-da-China), Tatiana dialoga com o período da escravidão, com a sexualidade, com a violência contra as mulheres. “Para mim, toda a literatura é política, o que não significa que seja politizada”, assinala, destacando “a política própria” do uso da linguagem de cada escritor. “O trabalho da literatura é dizer algo de forma a te tocar, que vai além das notícias do jornal que se vêem todos os dias e já não chocam mais.”

No seu novo romance, que sairá em Março no Brasil e em Maio em Portugal, há uma ligação directa à realidade — mais concretamente, à realidade de um país em que mais de 180 mulheres são violadas todos os dias. Em Vista Chinesa, Tatiana Salem Levy parte da história da violação de uma amiga, em 2014, para escrever sobre “as marcas do estupro, o corpo da mulher, a maternidade e a sexualidade”, tendo como pano de fundo o presente: “um Rio de Janeiro em colapso” no ano de 2019. “Quando eu escrevo tem sempre de tocar num ponto particular. Eu cresci, como todas as mulheres no Brasil cresceram, morrendo de medo de ser estuprada.”

Apesar de nunca ter tido dificuldades em publicar os seus livros em Portugal (o seu primeiro romance, A Chave de Casa, foi editado inicialmente pela Cotovia em 2007), considera que “existe uma grande resistência dos portugueses em ler literatura brasileira”, muito por causa “da questão da gramática”. “Se pegares numa pequena elite de cá ela gosta, mas sais do circuito do próprio meio literário e fica muito difícil.” Esta “resistência” ainda não foi ultrapassada, diz. Contudo, acredita que projectos como a Livraria da Travessa — livraria carioca que abriu um espaço em Lisboa em 2019 — possam “ajudar a trazer pequenas mudanças”.

De certa forma, é também isso que pretende a Editora Urutau, projecto entre o Brasil, Portugal e a Galiza, que vai lançar em breve VOLTA PRA TUA TERRA! Antologia Antirracista/Antifascista de poetas estrangeirxs em Portugal, onde estão presentes 37 poetas e artistas brasileiras (Hilda de Paulo é uma delas), entre outros autores de Moçambique, Angola ou Cabo Verde. Num país com “muitas feridas abertas e mal resolvidas sobre a questão colonial”, dizem os editores desta antologia, “incomodar é o primeiro passo”.

“Incomodar”. “Trazer ruídos e rupturas” (Jaime Lauriano), “botar cá pra fora” (Frankão), “desestabilizar” (Dori Nigro), “questionar” (Puta da Silva), “provocar confronto, fricção e conflito” (Jota Mombaça). Estas são algumas das palavras-chave para se conseguir avançar — e o circuito artístico português só tem a ganhar, já está a ganhar, com as acções e as movimentações, as reflexões e as poéticas, as muitas “modalidades de mundo” (citando Jota Mombaça) destes e de outros artistas brasileiros, destes e de outros artistas imigrantes.