Na época da criação deste texto, Hilda de Paulo ainda era conhecida por Mãe Paulo. A artista começou sua transição de gênero em 2020, mudando de nome nesse mesmo ano.
Adoecemos. Subitamente tal obviedade foi por mim assimilada no dia 27 de abril de 2019, quando o desfile de moda da São Paulo Fashion Week prosseguiu na íntegra logo após a morte repentina de um modelo sobre a passarela diante de toda a audiência. A morte do modelo não comoveu o suficiente para que o desejo do consumo das novas tendências fosse posto de lado pelo menos naquele contexto. Reconheci de vez a mais apodrecida essência capitalista na ênfase dada ao hedonismo e individualismo desmesurados gerados pelo consumo. Abruptamente, assimilei informações evidentes e enxerguei mais nitidamente um mundo completamente doente. Nesse fatídico dia, eu literalmente vomitei.
Há um artigo chamado “Doente de Brasil” escrito pela jornalista Eliane Brum, onde ela avalia a ascensão do atual presidente do Brasil e todo seu projeto neoliberal associado a um programa neonazista como responsável pelo aparecimento de um tipo específico de adoecimento em algumas pessoas, que está relacionado à precarização do trabalho nos últimos anos e à falta de esperança em um futuro mais justo ou menos violento. Seguramente, é a esse artigo que Mãe Paulo faz alusão em sua exposição.
A artista escolheu dois momentos tenebrosos da recente história de seu país e os esmiuçou através da recolha de postagens, memes e comentários aleatórios encontrados nas redes sociais sobre os dois períodos selecionados: o “Dia do Fogo” – uma ação orquestrada por produtores rurais da região Norte do Brasil para queimarem diversos pontos da maior floresta tropical do mundo – e o dia em que Roberto Alvim, ex-Secretário da Cultura do Brasil, anunciou um novo programa de incentivo às artes com texto plagiado de Joseph Goebbels (Ministro da Propaganda da Alemanha Nazista), tendo como música de fundo uma ópera de Richard Wagner – compositor alemão exaltado por Hitler.
Mãe Paulo realizou uma espécie de colagem a partir de cacos, reunindo fragmentos de todo o conteúdo que compilou, ordenando frases, ideias e imagens de autorias diversas que se dissiparam no Facebook e Twitter num ritmo frenético de abril de 2019 a janeiro de 2020. Além disso, através da apropriação de um frame percetível (apesar dos pixéis) do filme Espaço Além – Marina Abramović e o Brasil, Mãe destaca uma frase dita pela artista sérvia em contraponto a uma afirmação presente no meio de um dos imensos textos onde lemos: “não é porque não vivemos uma história que deixamos de senti-la. É essa capacidade que nos humaniza”. Percebemos claramente que a pesquisa antropológica e a cultura contemporânea com um cariz engajado são processos criativos habilidosamente recorrentes na sua maneira de conceber obras que mesclam textos e imagens, em que a política e a poética são impensáveis de modo independente.
No início desta escrita, exponho o mal-estar que vivi e a consequente expulsão ativa de todo o conteúdo gástrico pela minha boca para reforçar o quanto uma tomada de consciência diante de um fato fez com que eu precisasse expelir algo excessivamente indigesto. Para não adoecer de Brasil, Mãe Paulo vocifera, cospe, vomita tudo que diariamente consumiu em sua árdua tarefa de ler e ver um imenso lixo tóxico depositado na internet.
“… que eu também não adoeça de Brasil!” traz um conteúdo denso e totalmente incômodo, porém força-nos a entendermos algo que Judith Butler anunciou recentemente sobre como devemos nos tornar “seres sociais”, conscientes da nossa “interdependência social e ecológica” de um modo global.
Tales Frey
Fotografias da exposição …que eu também não adoeça de Brasil!, de Hilda de Paulo, na Mupi Gallery/Espaço de Intervenção Cultural Maus Hábitos, na cidade do Porto, em Portugal
Fotografias de Mariana Vitale da exposição …que eu também não adoeça de Brasil!, de Hilda de Paulo, na Mupi Gallery/Espaço de Intervenção Cultural Maus Hábitos, na cidade do Porto, em Portugal
Fotografias de Mariana Vitale da exposição …que eu também não adoeça de Brasil!, de Hilda de Paulo, na Mupi Gallery/Espaço de Intervenção Cultural Maus Hábitos, na cidade do Porto, em Portugal
Programa Paralelo da Exposição …que eu também não adoeça de Brasil!
Exibição de Filme
1 de julho de 2020, às 20h30 | Shortcutz Porto em parceria com a Mupi Gallery
Menino 23: Infâncias Perdidas no Brasil, Belisário Franca | Brasil, 2016, Doc., 79′, Cor, M/Livre
A partir da descoberta de tijolos marcados com suásticas nazistas em uma fazenda no interior de São Paulo, o filme acompanha a investigação do historiador Sidney Aguilar e a descoberta de um fato assustador: durante os anos 1930, cinquenta meninos negros foram levados de um orfanato no Rio de Janeiro para a fazenda onde os tijolos foram encontrados.
FICHA TÉCNICA
Hilda de Paulo: …que eu também não adoeça de Brasil! | Ciclo Poético ou Político?, Mupi Gallery, Porto, Portugal | Curadoria: João Baeta | Texto: Tales Frey | Revisão ortográfica: Marcio Honorio de Godoy | Tradução do português para o inglês: João Baeta | Produção e Comunicação: Mariana Vitale | Assistência de Produção e Comunicação: Catarina Rangel Pereira | Impressão: LUMEN – Imaging & Design Studio | Assessoria de Imprensa e Comunicação: Diana Reis | Parceria: Shortcutz Porto | Realização: Saco Azul | Agradecimentos: Ana Pigosso, Elo Company, Luisa Sequeira (Shortcutz Porto), Rubens Rangel e Tales Frey | 02 a 29 de julho de 2020
Cartaz de divulgação da exposição …que eu também não adoeça de Brasil! de Hilda de Paulo
#014 Podcast. Projeto: Outras Conversas | Entre-vistas com o Baeta com Hilda de Paulo. Associação Cultural Saco Azul/ Espaço de Intervenção Cultural Maus Hábitos, Porto, Portugal.