Tales Frey

“‘Orexia’: Um Coeso Sentido num Amálgama”, de Julia Pelison (2014)

 

Este texto de Julia Pelison foi publicado em: Artlyst (Maio de 2014).

 

No começo, tudo toava como uma sequência de gestos insanos num lugar que chegava quase a ser aterrorizante devido ao comportamento do performer, que transmitia aspectos de um psicopata nas suas movimentações um tanto suspeitas, pois segurava uma faca grande de cozinha e circulava pelo espaço expositivo, cumprimentando os observadores que lá chegavam, trocando informações com eles de forma trivial, mas sempre com essa faca na mão. Tales Frey não abandonava esse objeto em nenhum momento, ao contrário, agarrava o mesmo com energia, mantendo constantemente um tom que oscilava entre ora ares infantis ora patológicos.

O clima assombroso advinha principalmente dos áudios dos vídeos que se embaralhavam e formavam um ruído que remetia nossa percepção à emissão sonora de alguma cena pesada de filme de horror ou de algum pesadelo. Talvez essa interpretação seja muito particular, mas talvez seja pertinente para todos que lá estiveram desde o início da ação. São impressões advindas de estímulos viscerais gerados nessa performance-instalação-exposição ocorrida em maio de 2014 no Barracão Maravilha, uma galeria situada no bairro da Lapa na cidade do Rio de Janeiro.

Presenciávamos uma cozinha instalada no ambiente, com um fogão, panelas de alumínio, geladeira e ingredientes para o preparo de um jantar. Além de uma mesa grande lotada de televisores com pratos dispostos na frente de cada um deles. O público podia se sentar em qualquer uma das dez cadeiras para assistir aos vídeos expostos, sendo todos entupidos por conteúdos sanguinolentos.

Estava, assim, instaurada uma ambientação sombria, apesar de o espaço ser completamente claro, apresentando paredes brancas. Os televisores, as cadeiras, a mesa, enfim, quase tudo possuía a mesma matiz cândida hospitalar, e, quando não, entregava gradações negras, uma paleta precisa de cor, que não vacilava e que marcava extremos, contrastes intensos.

Ao abrir um pequeno cardápio que ali se encontrava, objeto que, ao invés da ementa, ostentava o texto-conceito da performance que gerou a exposição intitulada Orexia, poderíamos concluir que a atmosfera mórbida facilmente percebida era o grande acerto do artista, pois todo o conjunto de obras (incluindo a própria performance) foi materializado justamente a partir de um pesadelo, o qual foi transposto para aquele local, para que pudéssemos partilhar daquela vivência onírica pertencente à sua subjetividade, mas que foi ali universalizada.

No conteúdo da “perturbação noturna” (maneira como o artista prefere nomear o sonho que experienciou), Tales, numa galeria de arte, servia, em pratos brancos, uma feijoada aos espectadores. A mesa onde seria degustada a refeição estava repleta de televisores e, em cada um deles, eram transmitidos seis vídeos diferentes. Orexia é exatamente a tentativa de transpor esse sonho, que envolve uma performance (o ato de preparar e de servir uma feijoada) e seis vídeos idealizados no plano inconsciente, além de outros cinco que foram incorporados (quatro do próprio artista e um de Paulo Aureliano da Mata).

Certamente, o inconsciente apresenta ideias desconexas, confusas, misturadas e Tales assume isso no conceito de sua obra, mas observa que encontra coesão no meio desse caos, no meio dessa desordem. Na instalação esquizofrênica, entre bancos de diferentes formas, há uma unidade de cor; entre imagens aparentemente desarmônicas nas formas, investidas de cores, percebemos harmonia temática, que, de forma geral, envolve a efemeridade da matéria e a negação do falecimento por via da sua reintegração em outras matérias através da recombinação, embora víssemos de um lado um vídeo mais poético, lúdico e de outro um mais trash ou extremamente violento.

Uma fração do inconsciente do artista estava ali, discursando de forma contrária a uma lógica heteronormativa, falocêntrica, abordagens presentes em muitos outros trabalhos da Cia. Excessos. Daí podermos dizer que uma parte de Paulo Aureliano da Mata, também fundador e integrante da Cia., estava naquela inconsciência partilhada de Tales; se observarmos melhor esse duo de artistas, perceberemos, em todos os seus trabalho, uma fusão de tudo o que fazem, mesmo que de forma individual, seja na arte ou na vida. Vimos isso na exposição Moda e Religiosidade em Registros Corporais, vimos isso em Beija-me (que foi finalizada com o casamento, no sentido estrito, entre os dois artistas) e vemos aqui também em Orexia. Nunca há um sozinho, são sempre os dois; é sempre em parceria/companhia que realizam suas criações.

Orexia, performance-instalação que começa de forma sombria, densa, em tom de pesadelo, termina de maneira festiva, com feijoada, cachaça, cerveja e conversa fiada, papo sério ou qualquer diálogo que espontaneamente ocorre numa festa ou jantar para muitos amigos e/ou desconhecidos que se aglomeram num mesmo recinto artístico. O arremate da ação se dá com a formação de um grupo aturdido, embriagado, alcoolizado não só pelo literal ato de ingerir o que foi ali servido, mas pelo torpor ocasionado pelos vídeos e pela performance, que notavelmente propiciaram uma experiência única e extraordinariamente desprovida dos clichês maçantes da arte contemporânea, abrigados por tantas galerias e museus que temem o risco.