Tales Frey

Re-banho (2010)

 

Tales Frey, Re-banho, 2010. Vídeo, 11’33”. Edição: 5 + 2 P.A.

Edição 1/5 + 2 P.A. pertence ao Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP), São Paulo-SP, Brasil

Edição 2/5 + 2 P.A. pertence ao Museu de Arte Contemporânea de Niterói (MAC Niterói), Niterói-RJ, Brasil

 

Performance/ritual que envolve o ato de banhar-se como forma de purificação, de benção, simbolizando o batismo e a repetição de um ritual que se pratica habitualmente (como ir à missa aos domingos para receber a água “benta”). Ao mesmo tempo, a performance faz retumbar o que Nietzsche, há mais de um século, afirmou contra os limites da noção metafísica de razão que prevaleceu ao longo da modernidade. Assim como Nietzsche afirmou, em A Vontade de Poder, que a moralidade é “o instinto de rebanho no indivíduo”, essa ação, “Re-banho”, vem enfatizar o quanto esse modelo moral de matriz cristã é castrador e gera o pudor e a culpa em detrimento da liberdade do sujeito.

A ação consiste em um banho em frente a uma igreja, sob trajes virtuosos, com auxílio de água e sabão. Em momento algum o corpo é exibido, pois a ação de lavar ocorre por baixo da indumentária, sendo que o banho só termina quando a barra de sabão chega ao fim, levando à exaustão o ato de esfregar a pele e retirar a suposta sujeira, podendo, inclusive, surgir vermelhidões cutâneas devido a ação de friccionar.

 

FICHA TÉCNICA

Concepção: Tales Frey | Performers convidados: Joana Lleys, Lizi Menezes, Miguel Ambrizzi, Paula Guedes, Tales Frey e Tânia Dinis | Duração da ação: 60 minutos

 

HISTÓRICO

AO VIVO

[2010] Igreja de Santo Ildefonso, Porto, Portugal. 

 

SOB FORMATO VÍDEO E/OU FOTOGRAFIA

[2021] O Que Pode Um Corpo? SP-Arte 365 e Galeria Verve, São Paulo-SP, Brasil.

[2020] SP-Photo Viewing Room. Galeria Verve. São Paulo-SP, Brasil.

[2018] Exposição Enredos para um Corpo. Curadoria de Raphael Fonseca. Centro Cultural da Justiça Federal, Rio de Janeiro-RJ, Brasil. 

[2018] Exposição coletiva Só se for no Fundo do Mar. Organização/curadoria de Yiftah Peled, Marcos Martins e Hugo Fortes. Centro de Arte e Pesquisa (GAP), Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Vitória-ES, Brasil.

[2017] Festival Temporal. Assunção, Paraguai.

[2016] Exposição coletiva Em Tudo Quanto é Mundo Dito ou Não Dito. Curadoria de José Maia. Desobedoc 2016, Cinema Batalha, Porto, Portugal.

[2016] PerfoArtNet: V International Biennial of Performance. Curadoria de Consuelo Pabón. Bogotá, Colômbia. 


[2016] ENAPE – Encuentro Nacional de Performance. Curadoria de Laura Lubozac. Pachuca de Soto, Hgo., México.

[2016] Exposição Em Estado de Guerra. Curadoria de Hilda de Paulo e Tales Frey. Teatro Académico de Gil Vicente, Coimbra, Portugal.

[2015] CÓDEC/ Festival de Vídeo Y Creaciones Sonoras. La Calaca Centro Cultural, Cidade do México, México.

[2015] Mostra EN DIFERIDO. 7º Encuentro de Acción en Vivo y Diferido, A SEIS MANOS, Bogotá, Colômbia.

[2015] Exposição coletiva Múltiplas Perspectivas e não menos Contradições e Sonhos. Curadoria de José Maia. I Bienal da Maia: Lugares de Viagem, Maia, Portugal.

[2015] Exposição coletiva (Tra)vestir um fa(c)to. Curadoria de José Maia. Espaço MIRA, Porto, Portugal.

[2015] Exposição coletiva tpa ExchangeCuradoria de Manuela Macco e Guido Salvini. Galleria Moitre, Torino, Itália.

[2014] Exposição coletiva Moda e Religiosidade em Registros Corporais. Curadoria de Tales Frey. SESC Rio Preto, São José do Rio Preto-SP, Brasil.

[2014] Exposição coletiva Corpo (i)materializado. Curadoria de Hilda de Paulo e Tales Frey. Mostra Performatus #1, Central Galeria de Arte, São Paulo-SP, Brasil.

[2013] Exposição coletiva Moda e Religiosidade em Registros Corporais. Curadoria de Tales Frey. SESC Campinas, Campinas-SP, Brasil.

[2013] Exposição coletiva Moda e Religiosidade em Registos Corporais. Curadoria de Tales Frey. Centro para os Assuntos da Arte e Arquitectura, Guimarães, Portugal.

[2013] Rapid Pulse Festival Performance Art 2013: Video Series. Defibrillator Performance Art Gallery, Chicago, Estados Unidos.

[2013] Festival torinoPERFORMANCEART 2013. Curadoria de Guido Salvini. Turim, Itália.

[2013] Kuala Lumpur 7th Triennial – Barricade. Curadoria de Kok Siew Wai. Kuala Lumpur, Malásia.

[2012] Exposição coletiva Trânsitos / Visualidades. Curadoria de José Cirilo e Marcos Martins. Seminário Ibero-americano “Poéticas da Criação”Vitória-ES, Brasil.

[2012] KLEX in Georgetown. Penang, Malásia.

[2012] XII Semana de História da Arte da FLUP. Faculdade de Letras, Universidade do Porto, Porto, Portugal.

[2012] The Biennial 6th Bangkok Experimental Film Festival (BEFF6). Bangkok Art and Culture Centre. Bangkok, Tailândia.

[2011] The 2nd Kuala Lumpur Experimental Film and Video Festival 2011 – KLEX. Kuala Lumpur, Malásia.

[2011] Direct Action 2011. Institut Für Alles Mögliche. Berlim, Alemanha.

 

Tales Frey, Re-banho. Performance realizada na cidade do Porto, Portugal. Outubro de 2010. Fotografia de Marcos Guilherme, 50,7 x 76 cm. Edição: 5 + 2 P.A.

 

Tales Frey, Re-banho. Foto, 20 x 21 cm. Edição: 5 + 2 P.A.

 

Performance: Ação na Construção de Outra Espacialidades

Quando o Re-banho [de Tales Frey] ocupa o adro de uma Igreja no Porto para um banho coletivo, que histórias acrescenta àquele inacabado espaço/monumento? […] O cheiro de sabonete dove no adro da igreja descontrói o odor natural da missa dominical e transpõe ao espaço público aquilo que habitualmente é apenas privado: o banho. Mas igualmente transpõe o universo publicitário “da real beleza” para o discurso religioso, no qual o corpo é algo a ser controlado; tal transferência cria no espaço/monumento um novo espaço de interconexões, inabitual e político.

(Trecho retirado de: MACEDO, Suianni Cordeiro. “Performance: Ação na Construção de Outra Espacialidades”. eRevista Performatus. Inhumas, ano 2, n. 11, jul. 2014. ISSN 2316-8102)

 

Imagem e Dessemelhança

Este texto de Dinah Cesare foi publicado em: eRevista Performatus (Inhumas, Ano 1, n. 3, março de 2013, ISSN 2316-8102).

Intercessores

Mudança do lugar de quem olha – consequência de assistir a uma performance capturada por dispositivos. Entramos no âmbito que afirma as possibilidades das imagens. O pensamento a respeito das noções e experiências da imagem que surgiram na imbricação entre as linguagens e manifestações artísticas das artes contemporâneas necessita, por si só, de uma visada que procure por derivações. Para Deleuze e Guattari, o papel da filosofia é criar conceitos. Eles consideram ter criado pelo menos um de fundamental importância – o de ritornelo. O ritornelo é um problema relacionado ao território, referente às entradas e saídas do território. Então, isso nos leva à compreensão de uma nova pretensão do conceito de desterritorialização: é que não há território sem vetor de saída, e não há saída do território sem, ao mesmo tempo, um esforço de territorialização. As imagens da videoperformance interessam, sobretudo, por seu aspecto de partilha, de disponibilidade no mundo e por sua conjugação entre olhar e imaginação. Em Re-banho existe um desconforto experimentado com a rememoração do vivido no espaço topológico da cidade – reside aí uma espécie de edificação mítica que instaura um campo de batalha. Uma batalha contra a paralisia que o mito e seu regime de crença fortalecem.

 

Impressões da imagem

A primeira visão que o vídeo nos dá é de cima. Performers, baldes e uma sonoridade de respiração. Se nesse momento estamos claramente em um lugar de observador, outras tomadas nos colocam juntos aos performers – a câmera como personagem que escolhe os ângulos de visão. Acompanhamos o percurso realizado na rua quase como testemunhas. Esse movimento insinua um apagamento do primeiro, mas, juntos na montagem, faz pensar na ideia inversa – talvez estejamos sempre sendo vigiados, porém, ironicamente, por nós mesmos. A ação que testemunhamos se volta e nos olha. Muitas vezes, querendo ou não, nos vemos investidos em ajuizamentos.

A sonoridade da respiração imediatamente se mistura ao som urbano. John Cage disse em uma entrevista que, quando escuta música, parece, para ele, que alguém está falando, como se escutasse alguém falando sobre seus sentimentos ou sobre suas ideias de relacionamentos. Mas quando escuta o som do trânsito, tem a sensação de que o som está em ação. É como uma atividade do som que ele adora. Realizar a apropriação da ideia da atividade do som urbano em Re-banho tem o caráter de fazer surgir certos questionamentos que misturam a cidade e o corpo que age. O que é espaço externo? A cidade ou o corpo, na medida em que os dois viram agentes? Não estaríamos processando uma interioridade da cidade? Se o desejo máximo da subjetividade é adquirir uma insistente individualidade, a ação privada do banho realizada em espaço público empreende um movimento que refuta o natural. E se esse é um modo pelo qual no mínimo designamos alguma coisa por arte – contraponto ao natural –, dá-se um embaraço no ajuizamento, tanto do que seria o natural como do que seria o construído. Assim, nossa noção mesma de subjetividade fica desterritorializada, derivando entre essas polaridades. Nossa sorte será encontrar um ponto de fuga. Talvez a fuga possível seja se voltar para a realidade e investigar seu caráter de construção.

Re-banho focaliza o corpo alegorizado, quase como uma montagem de ícones. O vídeo faz o trabalho de recorte dos corpos-como-ícones diante da igreja. Na visão frontal, com os performers de costas, ela se mostra com força de monumento. As variações das imagens que nos chegam não impedem a afirmação de alguns motivos iconográficos que se repetem e, assim afirmados, tomam a feição de um evento histórico. À igreja é atribuído um valor de testemunho que, pelo menos em alguma medida, depende da atividade mental de uma época. Vemos, então, duas épocas em um confronto materializado no corpo – estatuária de Aleijadinho que aponta criticamente para o que a criou. Por meio da ação dos performers em se banhar vestidos, esfregando o corpo com água e sabão por baixo das roupas severas, cria-se uma espécie de escritura. Talvez uma nova escritura, uma liturgia às avessas que transforma a função da água. Ela não limpa, não acalma, mas quase que escarna os corpos. Nesse sentido, a imagem é simultaneamente texto. Um texto escrito pela fricção que coloca em xeque aquilo que consideramos nossa identidade: legado de autodestruição.

O (re)fazer que acontece na exibição da videoperformance menos confere eternidade ao presente específico da ação do que instala novas atualizações. Se o peso do testemunho tradicional se perde com a imagem reproduzida, a atualização do fenômeno parece se aproximar do que Walter Benjamin ressaltou a respeito das possibilidades da reprodução técnica de “colocar a cópia do original em situações impossíveis para o próprio original. Ela pode, principalmente, aproximar o indivíduo da obra”.

Outras implicações do corpo em Re-banho sugerem um modo de se relacionar com a questão divina da imagem assimétrica que origina o homem. Como nos diz Viviane Matesco em um texto esclarecedor, o pecado original introduz a dessemelhança de uma imagem decaída. A semelhança cristã, por mais que não se repita muito isso por aí, está pautada numa hierarquia, pois fixa uma cópia que se assemelha ao seu modelo, mas o inverso não é possível. A relação modelar do corpo cristão é com uma imagem; assim, existe uma necessidade imposta de mediação. Então, o que parece ser escrito pela imagem é a dessemelhança, que deixa de ser um tema e inclui o outro na ação.

A formulação básica do “coeficiente artístico” de Marcel Duchamp é que a obra de arte se abre no espaço do receptor, na temporalidade que vai detectar uma intensividade na obra. A arte que comumente chamamos de contemporânea, mais do que querer estabelecer lugares idealizados, procura por modos de convivência no espaço público em meio a nossa atualidade de experiências fragmentárias. O lugar do corpo inscrito na dessemelhança de Re-banho se refaz de uma teleologia que o fundamenta.

 

BIBLIOGRAFIA

BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras Escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 168.

MATESCO, Viviane. Corpo imagem e representação. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

 

Tales Frey, Re-banho. Performance realizada na cidade do Porto, Portugal. Outubro de 2010. Fotografia de Jorge Quintela

 

O Banho e o “Rebanho”

Este texto de Mayara Amaral foi publicado em: eRevista Performatus (Inhumas, Ano 2, n. 8, janeiro de 2014, ISSN 2316-8102).

Quando pequena, sempre fui à missa acompanhando meus pais. Eu não entendia por que estava ali, escutando uma pessoa, com roupa diferente, falar e, em silêncio, levantando-me, sentando-me, ajoelhando-me… Era realmente entediante ter que participar daquele tipo de ritual. O ponto alto era a comunhão dos fiéis, mas eu também não podia participar. Mais tarde, na catequese, descobri que só poderia participar desse momento quem tivesse confessado seus pecados ao padre (aquele que vestia o traje distinto de todos), pois, a partir disso, o indivíduo estaria “limpo” e digno de receber o corpo e o sangue de Cristo.

Quando assisti à videoperformance Re-banho, da Cia. Excessos, percebi surgir uma inquietude em mim: toda a minha vivência com a Igreja passou pela minha cabeça e, interessada na obra, esbarrei, por consequência, em uma reflexão acerca do âmago do ato performático junto à arte contemporânea e, também, dos primórdios desse gênero artístico.

A primeira consideração foi a ideia do fim da História da Arte (BELTING, 2006; DANTO, 2006). Tal conceito não tem sua significância de fim como morte da arte ou de sua ciência; o fato é que chega ao final a tradição, que estava inserida no mundo das artes, ou da história da arte, desde o início do período moderno, ou seja, o modelo organizado estilisticamente ao longo das épocas, com lógica interna, sai de cena para dar vazão às “várias histórias da arte” (BELTING, 2006). O argumento de Danto (2006) é muito semelhante, no que concerne ao fim de uma narrativa que legitima a arte, em que esta é vista como a etapa seguinte cabível à história; desse modo, não é o tema da narração que morre, mas sim ela mesma, nos moldes que vinha sendo praticada há muito tempo.           

Todavia, a arte contemporânea não é opositora das artes do passado nem deseja se libertar destas; o caminho é outro. Uma das partes constitutivas da arte contemporânea é o uso qualquer, que os artistas almejam fazer, das artes de outros períodos; o que se altera são os contextos nos quais essas referências foram produzidas, que já não existem mais (DANTO, 2006). Nesse ponto há uma grande diferença entre a arte moderna e a contemporânea abordada por Belting e Danto: a contemporaneidade tem seu início em meados da década de 1970, sem logotipos ou etiquetas identificadoras, sem a consciência do que estava se passando, muito diferente do período moderno. Nessa referida época, houve o distanciamento maior entre o artista e o colecionador de arte. Como resultado disso, surgiram intermediários no processo, formando um círculo de profissionais no meio, o que culminou na especulação das obras (que se tornaram produtos) em cotações e variações de acordo com o que o mercado ditava. Não é por meio desses fatores do regime de consumo que se desenvolveram as peculiaridades da arte contemporânea. Muito mais relevante do que o fato anterior foi a transformação do regime de consumo, com o aparecimento de outros tipos de comunicações ligadas à organização social e aos diferentes sistemas tecnológicos de transmissão de informação; mudanças que as práticas artísticas absorveram (CAUQUELIN, 2005). Jackson Pollock foi um dos mais emblemáticos artistas do período de transição da arte moderna para a arte contemporânea no quesito de ultrapassar os limites da tela, de ir além do método convencional de pintura, pois seus trabalhos eram imensos, como murais. Muitos tipos de materiais eram empregados em suas obras e o seu próprio corpo era o pincel. Para Allan Kaprow (2006), “Pollock […] deixa-nos no momento em que temos de passar a nos preocupar com o espaço e com os objetos da nossa vida cotidiana […], devemos utilizar a substância específica da visão, do som, dos movimentos, das pessoas, dos odores, do tato. Objetos de todos os tipos são materiais para a nova arte”.

A virada da década de 1960 para 1970 aconteceu de forma prematura, a partir de 1968, quando pairava, em muitas partes do mundo, a posição contra os valores dominantes na sociedade e contra o sistema. Com esse contexto em vista, o objeto de arte, compreendido na forma tradicional como algo material, tocável e visível aos olhos, foi considerado dispensável. Dessa maneira, surge a arte conceitual, em que “a ideia de conceito é o aspecto mais importante da obra. […] A ideia se torna a máquina que faz a arte” (LEWITT, 2006). A preocupação do artista era tornar sua obra interessante de forma mental para o observador. O descaso para com o objeto artístico materializado centrava-se no fato de ele ser visto como uma engrenagem no mercado de arte. Do ponto de vista da necessidade econômica, esse ideal não foi viável. Contudo, a performance pode ser considerada como uma extensão dessa concepção, pois é impossível tocá-la, apesar de ser possível vê-la. Além disso, por intermédio desse tipo de arte, o espectador aproximava-se do artista, pois ambos vivenciavam a obra, simultaneamente (GOLDBERG, 2006).

A performance representa, por meio da arte conceitual, o desapego aos materiais artísticos tradicionais; nela, os artistas fazem uso dos próprios corpos, de certo modo como Pollock ou, mais aproximadamente, como Yves Klein fez com o seu Salto no Vazio (1960). Nesse momento, a obra de arte é convertida no corpo do artista. Para Richard Schechner (2003), existem sete funções da performance, a saber: “entreter; fazer alguma coisa que é bela; marcar ou mudar a identidade; criar ou estimular uma comunidade; curar; ensinar, persuadir ou convencer; lidar com o sagrado e com o demoníaco”. Para que essa nova proposta de arte fosse passada para um maior número de pessoas, o vídeo foi adotado como um canal transmissor importante. A partir disso, ele tornou-se a nova arte (SHARP, 2013), mais pessoal e imediata. A figura de Bruce Nauman torna-se referência, nessa categoria, por sua obra e pioneirismo. A força de seus trabalhos é ocupada pelas ações repetitivas, o que envolve o observador na sinceridade e na concentração do artista persistente em cada ato.

De volta à obra que escolhi analisar, Re-banho [1] concentra-se no ato de banhar-se, de maneira ritual, purificando-se fisicamente, fato que ocorre no cotidiano da maioria das comunidades, e espiritualmente, como quando se presencia e se acompanha um rito religioso. A ideia é de Tales Frey; o título apresenta um trocadilho na língua portuguesa. Por um lado, o prefixo “re” traz o sentido de praticar alguma coisa novamente, mais uma vez, ou seja, banhar-se de novo; em outro aspecto, retirando-se o hífen, têm-se a palavra “rebanho” que, segundo o dicionário, significa:

 

Substantivo masculino. 1. Porção de gado lanígero. 2. por extensão Conjunto de outros animais guardados por um pastor. 3. Conjunto de fiéis de uma religião, em relação ao seu guia espiritual; grei, grêmio. 4. Grupo de homens que se deixam guiar ao capricho de um chefe. Espiritualmente: os paroquianos. [2]

 

Além disso, um fator muito importante para a escolha do nome foi a expressão “espírito de rebanho” (NIETZSCHE, 2008) que, para Tales Frey (2012), “acoplava mais de uma ideia em si, o que acho fundamental para o nome de uma obra, que não deve nunca ser literal”.

O ato performático consiste em uma caminhada realizada em 10 de outubro de 2010, ou seja, num domingo considerado como dia de descanso e reflexão, segundo os ensinamentos do catolicismo. A ação é praticada por um grupo de artistas vestidos em trajes sociais escuros, liderados pelo idealizador da obra, o qual, por uma feliz coincidência, veste branco na parte de cima do figurino, o que, para mim, reforça a ideia de líder a ser seguido pelos demais. Todos caminham silenciosamente, de maneira semelhante a uma procissão ou marcha, com dois baldes grandes pretos e cheios d’água, em direção à igreja de Santo Ildefonso, no Porto (Portugal). Esse templo é um dos pontos turísticos mais relevantes da cidade; sua construção iniciou-se em 1709, após a demolição de uma ermida presente no terreno, e foi concluída em 1739. Outro detalhe peculiar referente ao espaço de chegada do grupo de artistas é que o nome da praça onde se localiza a igreja de Santo Ildefonso é Batalha, o que provoca “um desconforto experimentado com a rememoração do vivido no espaço topológico da cidade – reside uma espécie de edificação mítica que instaura um campo de batalha. Uma batalha contra a paralisia que o mito e seu regime de crença fortalecem”. (CESARE, 2013) 

Ao chegar ao destino, todos se posicionam nas escadarias do local e começam a tomar banho, sem exibir as partes do corpo, ensaboando-se por baixo das vestes e olhando em direção à igreja; depois do término do sabão, todos se enxáguam ali mesmo. A ideia de Tales Frey concentrava-se apenas no ato em si, sem nenhuma interpretação ou fingimento, pois para ele “a ação […] já carrega os signos necessários para dizer o que é pretendido, não necessitando, assim, investir em um recurso calcado na interpretação, o qual tornaria redundante o discurso” (FREY, 2012). Pretendeu-se dar ênfase à moralidade cristã castradora, que culmina na culpa e no pudor que vão contra a liberdade do indivíduo. Por esse motivo, o corpo, na obra, encontra-se vestido no momento em que o indivíduo se banha, o que torna o ato o mais casto possível. Nessa obra, o suporte do acontecimento pictórico, o local da arte, o que sustenta a ideia (MATESCO, 2011) são os corpos dos artistas.

Durante o tempo que permaneci em Portugal pude perceber que parte do povo português é um tanto quanto católica e conservadora, em alguns aspectos. O curioso é que as pessoas que estavam na rua, naquela manhã dominical, não apreenderam o ato como algo ofensivo a qualquer coisa que fosse, muito menos à Igreja, como instituição ou religião, visto que a intenção da performance em si profanava o sagrado que ali estava; não houve intervenção de ninguém, mesmo que verbal; pelo contrário, os performers foram encarados de maneira respeitosa, como se estivessem em algum culto a Deus; este fato fica realçado com a presença de um menino, que se aproxima, senta-se na escadaria e fica observando o que os artistas estão fazendo, com muito respeito e seriedade.

Segundo Vito Acconci, em Algumas Notas sobre Atividade e Performance (2013):

 

Uma performance pode ser uma série de admissões condicionais, em que o performer vai seguir um determinado curso de ação se o terceiro se envolver (ou se não se envolver) em outro curso de ação. O que pode estar em jogo em uma performance não é uma locação (e sua ocupação), mas a capacidade de se movimentar mais ou menos à vontade.

 

A reação do público, no caso de Re-banho, caso fosse negativa, mudaria o desfecho da obra, talvez os artistas fossem impedidos de realizar o ato até o fim e o resultado seria completamente diferente.

A crítica é ao sistema moralizante e castrador, imposto pela Igreja ao seu “rebanho”, do qual muitas pessoas fazem parte ao redor do mundo. Tal instituição, diga-se de passagem, está calcada na sua enorme tradição, com cerca de quarenta dogmas, dez mandamentos e muitas orações. Essa criticidade é muito clara no desenrolar da performance, que possui uma ideia simples, mas que carrega uma discussão extremamente complexa, que chega a um dos instantes mais íntimos de um indivíduo: o banho; o momento dele consigo mesmo, como se fosse uma “comunhão”/retiro individual, onde o sujeito conhece seu corpo e participa do seu ritual de limpeza e “purificação” de si. Re-banho traz para o espaço público, cuidadosamente escolhido, esse ato extremamente particular (exceto quando ainda somos bebês) e subjetivo. Ao fazer isso, coloca o ser humano, sem a necessidade da nudez, tal como ele realmente é, com seu livre-arbítrio e imperfeições. O banhar-se é uma das poucas ocasiões em que se parte do pressuposto de que todos “estão” iguais socialmente, livres de culpas, julgamentos, pecados, reprovações… Como deveria ser, primeiramente, dentro de cada rebanho.

 

NOTAS

[1] Disponível em: <http://ciaexcessos.com.br/tales-frey/trabalhos/re-banho/>. Acesso em: 30 de agosto de 2013.

[2] Disponível em: <http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=rebanho>. Acesso em: 01 de setembro de 2013.

 

BIBLIOGRAFIA

ACCONCI, Vito. Algumas notas sobre atividade e performance. eRevista Performatus, Inhumas, ano 1, n. 6, set. 2013. Disponível em: <http://performatus.net/vitoacconci>. Acesso em: 01 de setembro de 2013.

BELTING, Hans. O fim da história da arte: uma revisão dez anos depois. [Das Ende der Kunstgeschichte. Eine Revision nach Zehn Jahren]. São Paulo: Cosac Naify, 2006.

CAUQUELIN, Anne. Arte contemporânea: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

CESARE, Dinah. Imagem e dessemelhança. eRevista Performatus, Inhumas, ano 1, n. 3, mar. 2013. Disponível em: <http://performatus.net/re-banho>. Acesso em: 01 de setembro de 2013.

DANTO, Arthur Coleman. Após o fim da arte: a arte contemporânea e os limites da história. São Paulo: Edusp, 2006.

FREY, Tales. Performance e ritualização: moda e religiosidade em registros corporais. Tese. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2012.

GOLDBERG, Roselee. A arte de ideias e a geração da mídia: 1968 a 2000. In: A arte da performance: do futurismo ao presente. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

KAPROW, Allan. O legado de Jackson Pollock. In: FERREIRA, Gloria; COTRIM, Cecília (Orgs.). Escritos de artistas: anos 60/70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006. p. 37-45.

LEWITT, Sol. Parágrafos sobre arte conceitual. In: FERREIRA, Gloria; COTRIM, Cecília (Orgs.). Escritos de artistas: anos 60/70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006. p. 176-181.

MATESCO, Viviane F. Corpo-Objeto. In: 20o Encontro Anpap. Rio de Janeiro: UERJ, 2011.

NIETZSCHE, Friedrich. A vontade de poder. Tradução de Marcos Sinésio Pereira Fernandes e Francisco José Dias de Moraes. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.

SCHECHNER, Richard. O que é performance? O Percevejo. Rio de Janeiro: UNI-RIO, ano 11, 2003, p. 25-50.

SHARP, Willoughby. Videoperformance. eRevista Performatus, Inhumas, ano 1, n. 6, set. 2013. Disponível em: <http://performatus.net/videoperformance>. Acesso em: 01 de setembro de 2013.

 

A problematização do corpo frente à religião e as ideologias da fé.

Vídeoperformance: “Re-banho” – Tales Frey e Cia. Excessos, 2010. 

Carregando um balde de água, um grupo de pessoas caminha pela cidade do Porto (Portugal) em direção a igreja de Santo Ildefonso. Ao chegar defronte à mesma, o grupo trajando indumentárias virtuosas, banha-se com água e sabão. A repetição do ato de esfregar o corpo de baixo da roupa parece remeter a relação de culpa que se associa a sujeira, a materialidade e a sexualidade. A performance documentada remete a discussão sobre “Pureza e perigo”, da antropóloga Mary Douglas sobre as formações de mitos de impureza e as noções de contaminação e a higiene moral. A videoperformance lembraa ideologia religiosa da Idade Média e sua obsessão com corpo pecaminoso. A lavagem, frente a uma instituição religiosa, converte a ação em algo obsessivo, revelando uma íntima relação entre religiosidade e insanidade.

(Trecho do artigo Corpo e Censura nas Artes Visuais: Só se for no Fundo do Mar, de Yiftah Peled, Marco Freitas Martins, Elaine de Azevedo)

 

Tales Frey comenta “Re-banho” para Patricia Reinheimer

Novembro de 2017

Sob um contexto obscuro em que fundamentalistas ocupam cada vez mais espaços de poder, o laicismo no Brasil tem sido gradualmente desfeito e, com isso, os direitos humanos passam a ser ameaçados, onde determinados indivíduos são estigmatizados por não se enquadrarem em padrões sociais ditos “normais” e, assim, são taxados como “desviantes”, como “abjetos”. Estamos quase no fim da segunda década do século XXI e, ainda, assistimos aos corpos e desejos sendo condenados em prol de uma suposta realidade suprassensível e, com isso, testemunhamos os pequenos e grandes avanços que ocorreram até então serem rabiscados das pautas urgentes, dando lugar aos desejos neoliberais egoístas e aos neopentecostais que garantem o poder e bem-estar a uns e umas e a miséria e privação de liberdade a outros(as). O avanço desse movimento reacionário no mundo é alarmante e, no Brasil, vemos a moralidade relacionada à religião aparecer em diversas esferas, inclusive no combate à arte que tenha como abordagens assuntos que envolvam corpo, desejo, e identidade/subjetividade.

Neste sentido, é válido confrontarmos a obra Re-banho (2010) com o contexto atual, trazendo mais uma vez à discussão um trabalho em que cinco pessoas se banharam em frente a uma igreja em Portugal sem que exibissem absolutamente nenhum corpo nu no espaço público, expondo as suas peles cobertas com trajes virtuosos, reforçando o objetivo principal da ação em sua absoluta subversão, onde os corpos deveriam ser lavados com água e sabonetes, mas a nudez deveria estar todo o tempo oculta. A moralidade do indivíduo que Nietzsche comparou ao “instinto de rebanho” foi usada como estratégia de ironizar qualquer modelo moral de matriz cristã que reprime instintos, motivando o pudor, gerando a culpa em detrimento da liberdade de cada sujeito.

Em quase todas as minhas criações, o corpo é um elemento central e é por meio do seu tecido externo (da própria pele ou de outro material colocado sobre ela) que eu reflito sobre códigos existentes entre o contexto e o individuo, sugerindo novas versões e subversões sob o anseio de proporcionar posicionamentos críticos a quem acessa o meu trabalho. Re-banho é mais um exemplo que dá sentido a essa minha afirmação sobre as minhas próprias abordagens.