Este texto de Julia Pelison foi publicado em: eRevista Performatus (Inhumas, ano 7, n. 20, abril de 2019. ISSN: 2316-8102).
Na época da criação deste texto, Hilda de Paulo ainda era conhecida por Paulo Aureliano da Mata. A artista começou sua transição de gênero em 2020, mudando de nome nesse mesmo ano.
Não é exclusivamente sobre o peso da fugacidade da existência que Paulo Aureliano da Mata pondera quando submete a sua própria pele às várias perfurações de agulhas que permitem a passagem das tintas e garantem seu corpo preenchido por uma nova tonalidade numa área específica. Suas múltiplas dermopigmentações conceituadas como arte carregam diversos discursos que ultrapassam o questionamento sobre o “eterno”, sobre o “para sempre” e, no extremo oposto, sobre a efemeridade da vida.
Hilda de Paulo, As Veias Ainda Abertas da América Latina (Políptico), 2014
Absolutamente, os trabalhos de body art (ou simplesmente arte do corpo) de Paulo não se restringem às lacônicas interpretações de que, ao modificar seu corpo por meio da tatuagem, ele queira fazer perpetuar uma determinada área (de)composta do seu corpo, como se essa parte especial da sua pele nunca fosse se transformar com o tempo, funcionando como uma integral metáfora da imortalidade, denotando uma vida que persiste durável. Mas essa precipitada hipótese é desmoronada já na avaliação do seu trabalho de body art intitulado As Veias Ainda Abertas da América Latina (2014), o qual corresponde à palma da sua mão tatuada de uma mancha vermelha, remetendo à célebre escultura que há na Fundação Memorial da América Latina em São Paulo. Diferentemente de uma tatuagem composta em outras partes do corpo, a tinta resiste menos à ação do tempo quando aplicada na palma da mão, e contesta justamente a noção mais imediata que possuímos com relação à técnica em questão. O discurso desse trabalho, portanto, perpassa impressões que desafiam as mais corriqueiras.
As Veias Ainda Abertas da América Latina, um conjunto de fotografias formado por onze imagens a partir do registro de um “ritual de transformação” ocorrido num estúdio de tatuagem, não por coincidência na cidade de São Paulo, denota uma visão política para além das linhas niemeyerianas e de suas condições formais. Cético, Paulo esquiva-se de forma pirrônica da associação à quiromancia, apesar de criar signos para serem lidos na sua mão; nela, é gravada a sua própria escrita a abordar a luta de classes tão presente na América Latina, onde nasceu e passou grande parte da sua vida.
Embora saibamos que na tatuagem como body art o sujeito é o seu próprio objeto de arte e não conseguirá deixar de sê-lo, independentemente do espaço e do tempo em que estiver, a obra, nesse trabalho, definitivamente não o acompanha em sua vida, embora tenha lhe deixado resquícios irreversíveis; o políptico fotográfico é a obra, ou seja, os registros da ação no estúdio é que consistem de fato esse trabalho.
Talvez essa obra seja a que melhor procura validar a tatuagem como uma vertente de importância na body art quando, ironicamente, Paulo confronta sua criação com tipos de trabalhos que são emoldurados e aprisionados num formato mais durável e que, muitas vezes, são vistos como segurança mais garantida a um mercado das artes mais homogêneo e tradicional. Não há, com essa afirmativa, a pretensão de dizer que, por exemplo, a pintura seja uma arte estritamente comercial. De forma alguma é pretendida tal conotação. Mas, sim, há a finalidade de demonstrar que existe uma hierarquização nas artes em sua acepção mercadológica clássica e, dentro desse contexto, a pintura a óleo, por exemplo, é o topo da preferência devido à sua permanência.
A body art deve ser compreendida como um gênero da arte contemporânea que se opõe ao mercado tangível das artes habituais, e Paulo bem observa os atrelamentos inerentes a essa expressão artística. Porém o fato de ele gerar uma materialização não aprisionada ao seu corpo como o dispositivo artístico, torna possível a sua comercialização e, nesse sentido, o trabalho vai de encontro com os interesses de mercado da arte contemporânea e suas múltiplas especialidades, com plurais segmentos evolutivos.
Em certa medida, o corpo do artista apresenta-se como um espaço a exibir uma coesa exposição individual, e o tempo dessa apresentação de uma conjuntura de trabalhos – autônomos como tatuagens ou como marcas que documentam o que outrora serviu como principal elemento para a criação de vídeo ou fotografia – coincide exatamente com o tempo de vida do artista. Sob a expressão “arte confessional”, cada obra originada por Paulo Aureliano da Mata expõe uma relação incontestavelmente autobiográfica e, assim, o ambiente do estúdio de tatuagem cria uma analogia do confinamento do seu espaço íntimo mostrado sem paredes a enclausurar suas vivências, as quais são universalizadas como arte. Nesse sentido, Romance Violentado (2011), outra de suas obras que envolvem tatuagem, pode ser o melhor exemplo para essa afirmação.
Hilda de Paulo, Romance Violentado (Tríptico), 2011
Hilda de Paulo, Romance Violentado, 2011
Muitas vezes, com base na ideia de catarse, ou seja, de expurgação e purgação, ou ainda de purificação, o “self” de Paulo Aureliano da Mata é frequentemente exposto e, com Romance Violentado, ele se propõe a vivenciar seus dilemas e traumas, quiçá como uma forma de superação. Assim vemos para além da camada mais externa do seu corpo da sua subjetividade, como se sua pele fosse uma redoma transparente a exibir seu conteúdo.
O elo estabelecido entre o artista e o espectador do seu trabalho pode ser similar ao que Aristóteles afirmou na Poética quando trata da “compaixão”, mas também pode ter relações com o preceito freudiano de reviver os próprios traumas como uma forma de libertação, contornando as censuras estabelecidas pelo superego. Sob uma óptica voltada para o pensamento junguiano, o performer pode compartilhar com alguém o que está perturbando e sobrecarregando o seu “self”.
Romance Violentado nada mais é do que uma tatuagem dotada de conotação artística, na qual uma organização de palavras compõe um violento registro feito na sua pele para que o ato fosse analisado através do veículo do vídeo e do dispositivo da fotografia, os quais são capazes de exprimir uma sarcástica combinação de vocábulos que traduzem uma particular frustração amorosa vivida, com um agudo desejo carnal, com intenso amor somado a sua concludente ferida.
O corpo é o principal meio ou elemento para suas expressões artísticas e, por isso, sua relação se dá de forma quase intrínseca à arte da performance. Portanto, muito embora Paulo se negue a dizer que faz arte ao vivo, Romance Violentado é um trabalho que pode ser contemplado de três formas: através da fotografia, do vídeo e, principalmente, da pele do artista.
Há, também, uma marca corporal pertencente a outro corpo que associou-se ao seu através do registro marcado pelas agulhas a inserirem pigmentos para timbrarem uma união afetiva, como, por exemplo, a body art criada com o videoartista e performer Tales Frey, com quem Paulo é fundador e membro da Cia. Excessos e da eRevista Performatus. Estabelecida a autoria entre ambos, não é só o corpo de Paulo que detém uma determinada mancha; ou seja, o seu corpo não está só.
Hilda de Paulo e Tales Frey, Aliança, 2013
Hilda de Paulo e Tales Frey, Imagem de Compromisso, 2015
Paulo Aureliano da Mata e Tales Frey casaram-se em março de 2013 e, juntos, conceberam a tal união como um evento de performance ao vivo, o qual foi intitulado Aliança. A ação foi estendida e confirmada, em 2015, por meio de uma marca corporal impressa em suas mãos; seus nomes gravados como ilustração da coligação admitida. O fato de Paulo levar o nome “Tales” em sua pele e vice-versa, mantendo a caligrafia de cada um a assinar seu próprio nome, converte seus corpos em documentos matrimoniais, como se, na carne, reafirmassem a assinatura do contrato de casamento. O objeto final, gerado a partir da tatuagem, é um díptico fílmico com cenas cotidianas registradas, onde cada um aborda a sua narrativa histórica da comunhão com o outro, inclusive o dia de tatuarem seus nomes. Compromisso é nome dado a essa última criação dos dois, sendo um trabalho que pontua uma intensa parceria a embaralhar arte e vida; tudo se mistura na vida dos dois artistas.
Hilda de Paulo e Suzana Queiroga, Em Você (Díptico), 2013
Outro corpo também conectado ao de Paulo através do recurso da tatuagem é o da artista carioca Suzana Queiroga. Em Você (2013) é um díptico fotográfico elaborado a partir de uma tatuagem comum entre os dois artistas para marcar um elo de uma intensa relação de amizade nascida em 2012. Por meio de conversas diárias entre os dois, ela propôs um desenho de uma forma cíclica, o qual fez parte da sua videoperformance Olhos d’Água (2013), tornando, dessa forma, a sua invenção uma tatuagem para estampar os dois corpos. Então, uma fotografia de cada um deles marcados com a mesma tatuagem nas costas (pouco abaixo da nuca) com seus rostos voltados para uma determinada paisagem expressiva designaria a composição de um livro de imagens organizado em coautoria, sendo que a fotografia de um seria a capa e a do outro a contracapa. A ideia é que ambos estivessem se olhando através das páginas interiores da obra quando o livro estivesse fechado e, ao abrirmos o fascículo, nós, leitores, mergulharíamos no universo particular de cada um deles.
Por fim, a obra deixou de servir a um livro e, hoje, é simplesmente um registro fotográfico de cada um deles postos lado a lado para formar um díptico, significando uma conexão entre os dois através da sobreposição imagética nas distinções de cada um dos retratos em que estão de costas sem exibirem seus rostos, ressignificando o discurso de Aristófanes presente em O Banquete de Platão para um contexto que ultrapassa o vínculo de dois amantes, exibindo um agudo vínculo de amizade.
Outras duas obras concebidas respectivamente entre 2014 e 2015, El Minotauro #4 e Eu Gisberta, são trabalhos que também envolvem a tatuagem como força motriz da transmissão substancial das suas abordagens. El Minotauro #4 (2014-2015) é uma videoperformance em que o artista expõe uma caricatura de si mesmo como um ser híbrido através de um desenho fixado na sua pele pela técnica da tatuagem, onde apresenta-se metade animal, metade humano. Com Eu Gisberta (2015), o artista empresta seu corpo como estandarte de revolta com relação ao ser humano considerado ignóbil numa sociedade amparada por lógicas machistas, heteronormativas, falocêntricas, binárias e pelos consequentes atos discriminatórios.
Hilda de Paulo, El Nacimiento del Minotauro (El Minotauro #4), 2014
Hilda de Paulo, Imagem de El Minotauro #4, 2015
Através da figura do Minotauro, Paulo avalia a negatividade sexual de determinadas áreas do seu corpo e a vestimenta como um artefato ligado ao pudor, mesmo quando utiliza, de forma até abusiva, o adorno corporal, ao praticar a sutura de micropeças de roupas sobre o pequeno corpo de um Minotauro tatuado em seu antebraço direito. O vídeo exibe apenas o momento de despir a imagem, o desfazer das suturas que, simbolicamente (e também literalmente), machucavam a sua pele. Esse trabalho faz parte de sua série de Minotauros realizada entre 2010 e 2015: El Minotauro # 1 (uma polaroide de uma figura feminina a constituir um corpo antropozoomórfico apenas através da torção de membros da sua própria anatomia); El Minotauro # 2 (uma fotoperformance criada em parceria com o artista Manuel Vason, em que Paulo masturba-se na chuva, em meio à natureza, com chifres readymades arranjados a partir de uma carriola); El Minotauro # 3 (um cartão-postal em que Paulo exibe seu corpo explicitamente nu durante um ato de masturbação para driblar normas estabelecidas em repartições públicas, colocando em xeque os limites do conteúdo permitido em uma imagem que circula através dos serviços dos correios).
Hilda de Paulo, Eu Gisberta, 2015
Já a body art intitulada Eu Gisberta não é simplesmente uma tatuagem que estará fixada no rosto do artista até o fim de sua vida como forma de ater, em si, uma bandeira em protesto contra toda colônia criminosa que condenou à morte e à condição de abjeto uma transexual chamada Gisberta. Para quem não conhece a triste história de Gisberta, trata-se de mais uma vítima de transfobia que foi brutalmente espancada, torturada por dias consecutivos e arremessada para o fundo de um poço cheio de água, de onde não conseguiu escapar e morreu afogada. Gisberta foi assassinada na cidade do Porto (Portugal) em 2006, e os delinquentes que tiraram sua vida foram encobertos pela justiça e estado portugueses, taxados como “crianças indefesas” que cometeram uma “brincadeira que correu mal”. [1]
Para além de sua própria pele, o dispositivo gerado por Paulo a partir do triste acontecimento é uma fotografia em que o artista expõe o seu rosto tatuado em preto com a inscrição “Gisberta”, enquanto, de olhos fechados, está inteiramente entregue às mãos do tatuador em seu estúdio.
Na imagem, vemos uma espécie de lápide sobre um túmulo. Sobre o seu olho direito cerrado, a inscrição do nome escolhido é capaz de retumbar, sob uma composição metafórica, uma vida que, antes de um aterrador desfecho, persevera. Embora aborde um teor indigesto e assombroso, o trabalho é luminoso não só por ser capaz de gerar reflexão através do seu material fotográfico em exposição, mas também por permitir que qualquer um que olhe o rosto do artista procure saber quem é/foi Gisberta.
Paulo usa o seu corpo como comunicado público de indignação sobre homicídios desculpabilizados por pervertidos sistemas judiciais. Nessa combinação gráfica, não é só “Gisberta” e seu acúmulo de exclusões sociais que lemos; podemos enxergar outras tantas “Gisbertas” que são mortas em contextos diretamente ligados aos crimes motivados por discriminação, seja por conta da orientação sexual, da etnia, religião ou qualquer particularidade de um(a) determinado(a) indivíduo(a) que é, infelizmente, julgado(a) como um ser desprezível por um determinado grupo de pessoas intolerantes com relação às diferenças.
Sobre a pele de Paulo Aureliano da Mata está marcado o seu repertório artístico em plena exposição, como se sua matéria fosse seu portfólio, seu caderno de estudo e o seu suporte de intervenção artística. Seja como obra em si ou como rascunho de estudo para um dispositivo estratégico qualquer, o procedimento é tão árduo quanto o assunto que versa, ou seja, a sua metodologia investigativa assume a dor literal de uma decorrente inconformidade que muitas vezes lhe pesa como uma sofrida vivência que precisa ser aliviada através da arte, mesmo que esse alívio culmine na intensificação da sua mais profunda dor.
NOTA
[1] CRESPO, Lara [et al.]. “Quanto vale uma vida Transexual em Portugal?” In: PORTUGALGAY.PT. Comunicados de Imprensa – Gisberta assassinada no Porto. [Em linha]. Consultado em 20 de março de 2015. Disponível em: <http://portugalgay.pt/politica/portugalgay71a.asp>.