Este texto de Bernardo Mendonça foi publicado em: A Beleza das Pequenas Coisas (Jornal Expresso, 2 de dezembro de 2022).
É artista multidisciplinar, curadora, investigadora, escritora, poeta e afirma-se como “travesti terceiro-mundista e transfeminista”. No início deste ano, apresentou no Porto a palestra-performance-oficina O que vem depois da esperança?, onde reflete de forma crítica como as pessoas trans têm sido representadas com base no preconceito ao longo dos tempos no imaginário português. Em julho, assinou no Expresso o artigo de opinião “A revolução inicia-se na educação: a navalha mais afiada contra a transfobia é o conhecimento”. Neste episódio, conta as muitas lutas, travessias e violências que superou até aqui chegar e deixa um olhar para o futuro: “Quando se fala da dificuldade das pessoas trans de procurarem emprego, a realidade não bate com a lei. Uma maior entrada de pessoas trans nas universidades será extremamente poderoso. É preciso pensarmos nessa transformação”. Ouçam-na no podcast A Beleza das Pequenas Coisas, com Bernardo Mendonça.
“Eu estou na casa do colonizador. Então mexer nos móveis dessa casa é um pouco difícil, mas eu vou mexer.” Essa frase foi dita pela artista e curadora Hilda de Paulo numa conversa sobre “Identidades” em junho de 2021, no Coliseu do Porto; meses depois, essas palavras inscreveram-se em tamanho gigante nas paredes da Galeria Municipal do Porto, a convite da curadora Marta Espiridião, como um grito que ecoa sobre a descolonização das identidades, saberes, metodologias, vozes e lugares de fala.
Já no início deste ano, Hilda de Paulo criou a palestra-performance-oficina O que vem depois da esperança?, com o Teatro Universitário do Porto, levando ao palco do espaço mala voadora uma reflexão cheia de camadas e de nós identitários por desatar e discutir sobre como os corpos “e as corpas” das pessoas trans, travesti ou fora da norma imposta de sexo-gênero-desejo têm sido construídos e representados ao longo dos tempos no imaginário português, e de como é urgente recuperar e dignificar as histórias dessas existências – tantas vezes silenciadas, invisibilizadas, criminalizadas, assassinadas ou patologizadas – e criar novas transepistemologias que se estenderão para o futuro. “O meu movimento é edificar novas transepistemologias no terreno do silêncio da História. É uma reparação histórica.”
Neste episódio em podcast, Hilda de Paulo chega a questionar: “Quem lucra com as vidas trans? Se quisermos pensar em inclusão e permanência, ainda não há muita gente a querer ceder espaço de trabalho para nós”.
Estas e tantas outras questões são a base de trabalho, de criação e reflexão de Hilda de Paulo, que é natural de Inhumas, município brasileiro de Goiás, a viver e a trabalhar no Porto há 14 anos, e que é autora do projeto “Arquivo Gis”, que homenageia a mulher travesti Gisberta Salce, assassinada no Porto, em 2006, e junta registos, obras, memórias e histórias de pessoas trans e travestis em Portugal. “[A mulher travesti brasileira] Gisberta Salce é mais do que um símbolo esvaziado de vida. É triste que ela seja só lembrada pela morte, está fixada na violência e tortura. Ela era uma ativista.”
Hilda de Paulo é também fundadora da Cia. Excessos e da Revista Performatus, que dirige com o companheiro de vida e de arte, o artista visual Tales Frey. Sobre a forma preconceituosa e transfóbica com que a sociedade ainda olha quem é diferente do padrão, Hilda conta, neste episódio, como recentemente os olhares das outras pessoas sobre si mudaram desde que a sua cadela partiu. “”Com a minha cachorra Deise sentia que as pessoas tinham mais ternura por mim, ela humanizava-me. Reparei que quando a Deise morreu perdi essa humanidade. Para a cisgeneridade, as pessoas trans só se tornam humanas quando são mortas de forma horrível. Quando são assassinadas todo o mundo compartilha a notícia nas redes sociais, mas não vejo essas partilhas de coisas boas sobre pessoas trans.”
Apesar disso e de um percurso de muitas travessias e violências, Hilda afirma-se “guerreira”, sempre disposta “a mexer nos móveis da casa do colonizador”. E a dado momento deste podcast recorda um episódio de abuso vivido há muitos anos numa sala de aula. “Sofri violência na escola por parte de uma diretora quando tinha 13 anos. Recordo-me dela me dizer: ‘Na sua ficha de matrícula está escrito sexo masculino e não tem pontos de interrogação. Exerça a sua função. Aqui no meu colégio é proibido usar calcinha cor-de-rosa!’ Era como uma guerra de autocorreção contra a minha existência! A partir dessa experiência comecei a pensar em suicídio…”
Hilda aproveita esta conversa para falar de outras realidades, nomeadamente para criticar e desmontar uma crônica recente que a deixou indignada: “Fiquei horrorizada quando li um artigo de opinião a dizer que ‘os portugueses ensinaram os índios a cuidarem da floresta e não o contrário.’ A Ellen Lima, uma amiga escritora, indígena, que vive em Portugal, define esse texto como um ‘devaneio neoliberal’, onde o autor na sua desonestidade intelectual aplica o colonialismo, o luso-tropicalismo, e é racista. Coloca a pessoa indígena como selvagem e incapaz de formular pensamento próprio”. E para um melhor esclarecimento sobre esse tema, Hilda aconselha a leitura atenta de vários autores: Ailton Krenak, Davi Kopenawa e da própria Ellen Lima.
No percurso de Hilda, importa destacar que tem integrado exposições coletivas nacionais e internacionais, e que algumas das suas obras fazem parte do acervo de instituições relevantes, como o da Coleção Municipal de Arte da cidade do Porto, o do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, o do Museu de Arte Contemporânea de Niterói, e o da Fundação Memorial da América Latina.
Pessoas como Hilda são revolução, amor e subversão que desmonta e questiona uma certa performance secular instituída sobre que é suposto ser e parecer nesta sociedade tão binária, tão branca, tão cisgênera e tão heteronormativa. E que ainda discrimina, maltrata e mata quem não corresponde ao padrão. Sobre o novo capítulo do Brasil, com a vitória de Lula, aponta para a discussão essencial que não deve esquecer os erros do passado, nem deixar de olhar para o que aí vem: “Eu não vejo o Brasil como uma disputa entre direita e esquerda, mas sim como a permanência da democracia contra o fascismo neonazi e neoliberal do Bolsonaro. Vejo este governo de Lula como um ponto de partida. E já tem uma deputada federal trans, em São Paulo, a Erika Hilton. Isso é histórico”.
Nesta longa conversa, Hilda vai a outros tantos lugares, assuntos e memórias, lê-nos um poema seu dedicado à sua amada cadela Deise, sugere vários autores e textos literários e partilha algumas das músicas que a acompanham. Mas o melhor é mesmo escutar este episódio com tempo e coração.
Deixamos aqui a lista das obras referidas por Hilda de Paulo.
ANZALDÚA, Gloria. A vulva é uma ferida aberta & outros ensaios. Trad. de tatiana nascimento. 1. ed. Rio de Janeiro: A Bolha, 2021.
HILDA DE PAULO. “Eu Gisberta”. In: MELO, Manuella Bezerra de; VAZ, Wladimir (org.). Volta para tua terra: uma antologia antirracista/antifascista de poetas estrangeirxs em Portugal. 1. ed. Cotia: Urutau, 2021.
HOOKS, bell. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. Trad. de Stephanie Borges. 1. ed. São Paulo: Elefante, 2020.
LORDE, Audre. A unicórnia preta. Trad. de Stephanie Borges. 1. ed. Belo Horizonte: Relicário Edições, 2020.
RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala?. 1. ed. Belo Horizonte: Letramento, 2017.
RIBEIRO, Patrícia. Ontem homem, hoje mulher. 1. ed. Lisboa: Chiado, 2014.
VILLADA, Camila Sosa. As malditas. Trad. de Helena Pitta. 1. ed. Lisboa: BCF, 2022.
CRESPO, Lara. Despida: reflexões de uma mulher transexual. Ebook, s/ed., 2016.
Como sabem, o genérico é uma criação original da Joana Espadinha, com mistura de João Firmino (vocalista dos Cassete Pirata). Os retratos desta vez são da autoria de Ana Brígida. A sonoplastia deste podcast é do João Martins e João Luís Amorim.
Até para a semana e boas escutas!