“…que eu também não adoeça de Brasil!”, de Tales Frey (2020)

 

Este texto de Tales Frey foi publicado em: FREY, Tales. “…que eu também não adoeça de Brasil!. …que eu também não adoeça de Brasil!: Folheto. Porto, Portugal: [s.n.], Mupi Gallery, 2020.

 

Na época da criação deste texto, Hilda de Paulo ainda era conhecida por Mãe Paulo. A artista começou sua transição de gênero em 2020, mudando de nome nesse mesmo ano.

 

Adoecemos. Subitamente tal obviedade foi por mim assimilada no dia 27 de abril de 2019, quando o desfile de moda da São Paulo Fashion Week prosseguiu na íntegra logo após a morte repentina de um modelo sobre a passarela diante de toda a audiência. A morte do modelo não comoveu o suficiente para que o desejo do consumo das novas tendências fosse posto de lado pelo menos naquele contexto. Reconheci de vez a mais apodrecida essência capitalista na ênfase dada ao hedonismo e individualismo desmesurados gerados pelo consumo. Abruptamente, assimilei informações evidentes e enxerguei mais nitidamente um mundo completamente doente. Nesse fatídico dia, eu literalmente vomitei.

Há um artigo chamado “Doente de Brasil” escrito pela jornalista Eliane Brum, onde ela avalia a ascensão do atual presidente do Brasil e todo seu projeto neoliberal associado a um programa neonazista como responsável pelo aparecimento de um tipo específico de adoecimento em algumas pessoas, que está relacionado à precarização do trabalho nos últimos anos e à falta de esperança em um futuro mais justo ou menos violento. Seguramente, é a esse artigo que Mãe Paulo faz alusão em sua exposição.

A artista escolheu dois momentos tenebrosos da recente história de seu país e os esmiuçou através da recolha de postagens, memes e comentários aleatórios encontrados nas redes sociais sobre os dois períodos selecionados: o “Dia do Fogo” – uma ação orquestrada por produtores rurais da região Norte do Brasil para queimarem diversos pontos da maior floresta tropical do mundo – e o dia em que Roberto Alvim, ex-Secretário da Cultura do Brasil, anunciou um novo programa de incentivo às artes com texto plagiado de Joseph Goebbels (Ministro da Propaganda da Alemanha Nazista), tendo como música de fundo uma ópera de Richard Wagner – compositor alemão exaltado por Hitler.

Mãe Paulo realizou uma espécie de colagem a partir de cacos, reunindo fragmentos de todo o conteúdo que compilou, ordenando frases, ideias e imagens de autorias diversas que se dissiparam no Facebook e Twitter num ritmo frenético de abril de 2019 a janeiro de 2020. Além disso, através da apropriação de um frame percetível (apesar dos pixéis) do filme Espaço Além – Marina Abramović e o Brasil, Mãe destaca uma frase dita pela artista sérvia em contraponto a uma afirmação presente no meio de um dos imensos textos onde lemos: “não é porque não vivemos uma história que deixamos de senti-la. É essa capacidade que nos humaniza”. Percebemos claramente que a pesquisa antropológica e a cultura contemporânea com um cariz engajado são processos criativos habilidosamente recorrentes na sua maneira de conceber obras que mesclam textos e imagens, em que a política e a poética são impensáveis de modo independente.

No início desta escrita, exponho o mal-estar que vivi e a consequente expulsão ativa de todo o conteúdo gástrico pela minha boca para reforçar o quanto uma tomada de consciência diante de um fato fez com que eu precisasse expelir algo excessivamente indigesto. Para não adoecer de Brasil, Mãe Paulo vocifera, cospe, vomita tudo que diariamente consumiu em sua árdua tarefa de ler e ver um imenso lixo tóxico depositado na internet.

“… que eu também não adoeça de Brasil!” traz um conteúdo denso e totalmente incômodo, porém força-nos a entendermos algo que Judith Butler anunciou recentemente sobre como devemos nos tornar “seres sociais”, conscientes da nossa “interdependência social e ecológica” de um modo global.

 

Tales Frey