“Eu como Você”, de Pollyana Quintela (2023)

 

Este texto de Pollyana Quintela foi publicado em: QUINTELA, Pollyana. Eu Como Você: Folheto. Porto, Portugal: [s.n.], Espaço de Intervenção Cultural Maus Hábitos, 2023.

 

O espaço entre o-eu-e-o-outro é impreenchível. Mesmo dois corpos muito juntos guardam consigo um buraco, uma nesga ou uma fresta de ar por onde se sopram palavras cuja transparência não pode se realizar. Ao que parece, é preciso um pouco de vazio para produzir sentido; um pouco de impossibilidade para mobilizar o desejo. Nessa lacuna, é a linguagem que goza de um profícuo campo de criação, trançando alianças entre realidade e fantasia, possível e impossível.

Tales Frey e Hilda de Paulo, artistas brasileiros baseados em Portugal, produzem juntos (e separados) desde 2006. Em contraste um com o outro, seus trabalhos se dedicam a perscrutar os limites entre dois corpos, duas imagens, dois objetos, para quem sabe produzir um terceiro – uma outra coisa. Como numa dança contínua de improvisação, o casal ora se mistura, ora se separa, oscilando entre a fronteira e a nublação. Eu como você: eu à sua imagem e semelhança. Eu como você: eu te consumo e assimilo em mim esse outro que você é, à nossa imagem e diferença.

Nessa exposição, tais investigações do jogo identidade-alteridade são o fio condutor que avizinha obras recentes de ambos. Ao transitar pelos mais diversos formatos, suas produções dialogam com interesses de múltiplos campos, como as artes visuais, as artes cênicas e as artes performáticas, configurando-se como exemplo de prática que habita as bordas e explora a potência daquilo que é limítrofe e adjacente. Tales Frey é conhecido por trabalhar com procedimentos que profanam a unidade do corpo através de espelhamentos, duplicações e multiplicações, transformando-o num dispositivo estranho e menos reconhecível, submetido a uma espécie de metamorfose temporária e fantasiosamente menos pautado por estigmas, padrões sociais e expectativas preestabelecidas. Seus “indumentos” nublam os limites onde começa um corpo e acaba o outro, dedicados a explorar a materialidade social do espaço circundante e refletir um senso ético que busca exercitar formas de subjetivação política. Em casos como Triunfo (2019), composto por um par de luvas para quatro mãos, ora os performers parecem responder a gestos coreografados de plena harmonia e integração, como se um fosse o efeito espelhado do outro, ora se evidencia um senso de disputa e desarranjo mais claro, uma vez que os movimentos de um indivíduo têm efeitos diretos sobre os movimentos do outro. Além disso, a funcionalidade original do objeto é deslocada. A luva de boxe, usada para melhor refletir a plenitude de um golpe, aqui proporciona um estranho encontro íntimo. 

É significativo notar, no entanto, que os corpos humanos que são matéria-prima e ferramenta do artista ostentam códigos visuais que vão na contramão da reivindicação de um eu específico e único. Suas vestimentas ambicionam neutralidade, além de haver pouco ou nenhum acessório, como se o artista estivesse interessado numa espécie de anonimidade. Tales não se refere a este ou aquele sujeito, mas ao Eu e ao Outro como categorias ontológicas, apesar de presentificadas por diferentes corpos – inclusive o seu próprio – e em diálogo com forças do campo social (é constante, por exemplo, a presença estranhada de signos convencionais como o vestido de noiva, o salto alto, o tule e outras vestimentas consideradas “coisas de mulher”, ou o terno e o sapato social, considerados “coisas de homem”). Não é raro, ainda, que suas performances deflagrem não o triunfo da ação ou a virtuose do movimento, mas justo o conflito e a colisão, a hesitação do gesto e algum resto de fracasso e exaustão, levando a crer que há algo nessa “coletividade” que não necessariamente coincide com a fantasia democrática, acenando ao ambíguo buraco de que falamos no início deste texto.

Já no caso de Hilda de Paulo, tais questões aproximam-se mais das chamadas “escritas de si”, cujo cerne é a exploração da autoficcionalização, da fabulação das identidades e da aproximação entre o íntimo e o público. Em sua obra, com mais ou menos ênfase, vemos a presença da primeira pessoa, em que se identificam aspectos de discurso autobiográfico. Não se trata, porém, de performar a autoficção para estabelecer uma identidade fixa e unívoca, ao contrário, o gesto se aproxima mais do reconhecimento de uma outra – a estrangeira, a estranha – no seio de si mesma. Enquanto mulher travesti, interessa à artista tensionar a suposta naturalidade do contrato sexo/gênero/desejo e seus marcadores ideológicos, reconhecendo o corpo como campo de batalha e laboratório de experimentação; dispositivo em disputa sobre o qual o poder político se exerce e se impõe. Sua série de Eus, sempre dedicada a figuras de importância afetiva para a artista, é constituída de objetos‑pintura de espessura matérica, caráter híbrido e motivação algo literária, por vezes aproximando fragmentos do corpo humano a elementos vegetais e animais. Tais exercícios de expressão subjetiva não se limitam, no entanto, a uma mera exteriorização da intimidade. Para Hilda, interessa situar as fábulas do “eu” em pressupostos intelectuais, ao reconhecer que às trans*epistemologias não interessa a fantasia separatista de uma História da Arte dedicada a delimitar fronteiras entre o que é biográfico (aspecto em geral desvalorizado, considerado demasiado solipsista ou mera “coisa de bastidores”) e o que é público (aspecto sobrevalorizado, mas cujo ideal sempre esteve sujeito a exclusões baseadas em gênero, raça/etnia e classe).

Daí somos levados a inferir que é justo no campo da criação artística, no terreno do exercício plástico da linguagem, que será possível contestar e estrangular os clichês produzidos pelas normas da cultura cotidiana, em busca, quem sabe, de uma outra vitalidade, embora nunca plenamente realizável/realizada. Quando a artista é a um só tempo o sujeito que fabula e o objeto de sua fabulação, o que lhe interessa é afastar-se das imagens produzidas pelos que veem no seu corpo não um “eu” dotado de subjetividade singular, mas um receptáculo de bordões e estereótipos, obstruído por uma miríade de gestos predicativos. E, apesar do caráter supostamente individual desse exercício, o que suas respostas alimentam é a construção de um novo imaginário coletivo (evidente que o “novo” aqui, no que tange às identidades, é uma condição também amplamente disputada pela lógica neoliberal, para quem a repaginação estética é apenas o verniz que permite que os privilégios continuem sempre muito velhos, o que lega ao campo da arte o desafio, hoje, de reposicionar com radicalidade o jogo entre representação e infraestrutura). Talvez por isso Hilda multiplique seus Eus: transportados para fora de si, eles denotam uma espécie de multidão. Sua repetição deseja produzir diferença. Talvez por isso Tales também despersonalize seus corpos: destituídos do fetiche da supraindividualidade, eles se autorizam a novas semantizações. Sua repetição deseja produzir diferença. Trata-se de formas distintas de derivar de si mesmo e, em paralelo, aproximar-se um pouco mais do outro, rondando a tal lacuna impreenchível.

Para as duas produções, importa constatar que toda identidade é construída em contraste com uma alteridade, um outro de quem nos diferenciamos. Só somos algo em relação a um referente, o que significa que somos muitos, na medida em que mudam os nossos contextos. A estrutura de um corpo é a composição da sua relação; e a possibilidade de reconhecer a identidade como uma dança das cadeiras nos habilita a perseguir uma subjetividade menos subordinada às coerções sociais. Eu como você reivindica o sujeito como construção ficcional para compreendê-lo também (e necessariamente) como objeto. É nessa dupla condição que poderemos exercitar a nós mesmos como plataformas singulares, migrantes e transitórias – formas abertas, como a própria matéria da vida.

 

Pollyana Quintella

curadora