“Ser mulher artista, hoje: reflexões em torno de ‘Tudo o que eu quero'”, de Carolina Franco (2021)

 

Este texto de Carolina Franco foi publicado em: FRANCO, Carolina. “Ser mulher artista, hoje: reflexões em torno de ‘Tudo o que eu quero’”. Gerador, 18 de agosto de 2021.

 

Na perspetiva de Hilda de Paulo, artista transfeminista decolonial e curadora, esta exposição — a que chama de CISposição — “poderia ser extremamente importante se em sua construção não fossem utilizada as mesmas ferramentas CIScoloniais de sempre, que foram (e ainda são) constantemente aplicadas seja em qualquer outro tema de exposição”. Hilda identifica uma problemática comum a grande parte das exposições e questiona quem pode entrar e porquê. Quais são os critérios? “Pensando, então, a partir das ondas de descolonização dos museus que acontecem em alguns lugares da Europa nesse momento, a começar que ‘artistas portuguesas’ não deveriam ser ‘artistas de Portugal’ no título dessa CISposição? Porque ‘artistas de Portugal’ carrega uma pluralidade de pessoas que vivem em Portugal. Já ‘artistas portuguesas’ carrega um atravessamento ainda muito salazarista ao dar uma ideia muito falsa de uma certa portugalidade, de uma certa unidade geográfica, e, simultaneamente, há a CIScolonialidade do dia a dia que ainda vai ditar a ideia de que só pode entrar e pertencer nessa CISposição um recorte muito específico de quem é CISnacionalizado e de quem não é”, sugere.

Enquanto artista transfeminista, Hilda levanta mais uma questão: “não podemos nós travestis e mulheres trans ser também mulheres?” Para alargar a sua reflexão, que surge de dentro para fora, a artista transfeminista decolonial e curadora cita o livro Transfeminismo de Letícia Nascimento, transfeminista brasileira: “não é a nossa ‘anatomia biológica’ que produz o gênero, mas o gênero, como indica Judith Butler, é o próprio processo pelo qual os corpos se tornam matéria.” 

“Com isso, é necessário a gente entender que mulher é uma situação histórica, o que significa que mulher só tem sentido em dado momento da história e a partir de determinadas práticas de género. À vista disso, nota-se que mulher não é uma ontologia, ou seja, não há essência, não se nasce mulher, mas se pode funcionar, sim, como mulher. Então, o que é uma mulher? Não é possível responder essa pergunta, porque, desse modo, remete a ser uma essência constante, visto que mulher é funcionamento. Por isso, a pergunta deve ser: ‘Como funciona aquilo que, em dado momento do tempo, se chama mulher?’ Desse lugar, sim, se consegue descrever as práticas sociais que constituem esse sujeito mulher em dado momento do tempo, porque trata-se muito mais de tecnologia do que uma ontologia. E por ser justamente uma tecnologia em que nós nos aproximamos do funcionamento de nossas práticas sociais e do funcionamento da sociedade em relação a nós. Sendo assim, a CISposição ‘Tudo o que eu Quero: Artistas Portuguesas de 1900 a 2020’ deveria ter estudado melhor as experiências das mulheridades e feminilidades levando em conta sua pluralidade para além das somente experiências cisgéneras — em grande maioria, experiências cisgéneras brancas — apresentadas”, analisa.

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Já para Hilda de Paulo, é “urgente DESESSENCIALIZAR o género e interromper discursos TRANS-EXCLUDENTES”. “As nossas TRANS*existências em Portugal não são invisíveis: são apagadas. Porque procurar igualdade de gênero no campo das artes visuais em Portugal não pode, não deve, ser somente entre homens CIS e mulheres CIS”, diz, por fim, a artista transfeminista.