Tales Frey

“O que Diz Aquele Mero Pedaço de Corpo?”, de Julia Pelison

 

Este texto de Julia Pelison foi publicado em: dezanove – notícias e cultura LGBT em português (Outubro de 2015. ERC 125969).

 

Felizmente, observamos uma intensa ascensão da teoria e política queer em nosso contexto atual e, obviamente, o interesse pelos preceitos que envolvem essa corrente referida está diametralmente relacionado ao também crescente movimento de um conservadorismo fanático/retrógrado/repressor que, lamentavelmente, tem tomado força e conquistado um número significativo de adeptos.

Testemunhamos ainda uma resistência, ora mascarada ora escancarada, do patriarcalismo teimoso em sua conduta inflexível com relação à liberdade de cada indivíduo. Dada essa situação, criar uma extensão do já tradicional Festival Queer Lisboa no norte de Portugal foi uma ponderação de extremo valor por parte da organização do evento.

Em muitas conversas informais, antes e depois das sessões de cinema, nomes de teóricas(os) como Paul Beatriz Preciado, Judith Butler, Gilles Deleuze, Monique Wittig, Michel Foucault, Simone de Beauvoir, Félix Guattari, Susan Sontag, entre muitas(os) outras(os), encorpavam muitos argumentos do público que discutia o conteúdo da programação. O mesmo tom despretensioso de conversa para debater a temática ali assumida foi arrastado até o desfecho do evento no último dia 10 de outubro de 2015 no Espaço de Intervenção Cultural Maus Hábitos, na cidade do Porto. Ali estava instalado o corpo do performer Tales Frey numa das paredes do ambiente. E é justamente por conta desse trabalho que o presente texto se materializa.

Através de um orifício na parede branca do Maus Hábitos, víamos apenas um recorte do corpo do artista. Apenas o seu traseiro estava disponível ao olhar (e ao toque em alguns casos) da audiência, como se esse recorte da sua carne fosse um objeto e não mais parte do seu corpo real. Víamos o corpo objetificado e posicionado numa altura não condizente ao corpo fidedigno; a elevação era a de uma obra exposta na parede numa galeria e, ao lado das nádegas do artista, estava a legenda do trabalho, tal qual vemos ao lado de pinturas, esculturas, instalações etc. “Por favor, não tocar”. Mas muitas(os) dos presentes tocavam na obra ali exposta; umas(uns) para apenas constatarem se o material da obra era carne ou cera ou qualquer outra coisa, outras(os) para atender ao próprio prazer pessoal.

A passividade daquele pedaço de corpo apresentado na parede do espaço muitas vezes despertava não só o desejo do simples toque, mas o anseio completamente sádico de agredir aquele fragmento de carne e pele, como se o tal retalho fosse indolor, como se o mesmo não tivesse a chance de manifestar a sua dor. E de fato a dor não era manifestada ali no mesmo espaço e, por isso, não comovia.

Uns faziam-lhe carinho, outros aplicavam-lhe golpes, tapas, jogavam-lhe bebida, torturavam-lhe com fogo, interagiam com ou sem nenhuma compaixão.

O desconforto com ou a assimilação do “objeto” exposto culminava em moléstia ou troca inofensiva de tato entre a obra e a audiência. A matéria corpórea soava falsa, toava uma imitação, assemelhava-se ao órgão prostético e suscitava a tentação do toque; forçava que o(a) observador(a) se posicionasse como participante e ignorasse a prescrição dada através do título do trabalho. Sagazmente, o artista ironizava as relações estabelecidas através do seu traseiro, questionando desde o objeto de arte inerte e intocável até as relações biopolíticas presentes nas sociedades desde séculos atrás que ecoam até a atualidade. O artista forçava-nos à reflexão ao expor seu rabo sem pelos, como apelo à consideração sobre a redutora operação tecnológica que determina a diferença sexual através de uma representação metonímica pelo meio de órgãos isolados: vagina e pênis. Na performance-instalação, Tales Frey expõe um centro erógeno universal, ou seja, uma área corpórea comum a todos, um fragmento destituído de diferenciação sexual, colocando em xeque todo o sistema tradicional da representação sexo/gênero e, naturalmente, tal postura política, quando apresentada de forma em que não há como ter defesa para além do discurso visual, desperta a fúria dos que agridem e, ao mesmo tempo, o “high five” de quem acata o argumento.