Este texto de André Bezerra e Chrystine Silva foi publicado em: eRevista Performatus (Inhumas, Ano 1, n. 6, setembro de 2013, ISSN 2316-8102).
Existem momentos na vida em que a questão de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a olhar ou a refletir.
Michel Foucault (1984: 13)
Ver a si mesmo, a uma parte de si mesmo, ao contrário de si mesmo, ver-se inexatamente igual ao que o outro vê, ver-se de novo e de novo, fitar-se sem desvio do que se vê, mas desviando o que se vê. Esse é o jogo contido em Reciprocidade Desalmada (2010), da Cia. Excessos.
Neste ensaio, nos proporemos a um jogo caleidoscópico de alguns conceitos que beijam a imagem dessa performance, acariciando outras possibilidades de leitura do corpo, da subjetividade e da singularidade dessa imagem que reflete a superfície do espelho.
Especular: observar, indagar, inferir. Espelho, espelho meu, existe algum eu? Através do espelho e o que se encontra por lá, um caleidoscópico e fragmentado eu. Presente de colonizador para colonizado. Mr. Hyde e Dr. Jekyll num laboratório sem espelhos. O Contranarciso de Leminski, sem enxergar a si mesmo, mas tantos e tantos outros. Miragem de si e si mesmo, duplo e virtual, as narrativas e acionamentos do espelho na literatura e nas demais artes, como na pintura, em As Meninas, de Diego Velásquez, por exemplo, parecem ser um espaço de questionamento e fascinação sobre a própria natureza do corpo, da visão e da realidade.A superfície polida e refletora do espelho é zona de fronteira na performance Reciprocidade Desalmada, da Cia. Excessos, uma fronteira à beira da qual o próprio corpo se coloca para desencontrar-se de si mesmo. Nessa ação, realizada na cidade do Porto (Portugal), cinco performers se colocaram no espaço público defronte de espelhos fixados na parede e puseram-se a beijar o próprio reflexo pelo período de uma hora. As mulheres (Berenice Isabel, Joana Lleys, Lizi Menezes e Paula Guedes) vestidas com roupas socialmente reconhecidas como trajes masculinos, e o único homem nessa ação (Tales Frey) usando um vestido de noiva, paramentado com véu, colar e sapatos de salto alto.
Reconfigurar a imagem do próprio corpo através desse objeto refletor, objeto que nos dá a dimensão de quem somos e nos institui como sujeitos na percepção de nossa individualidade na psicanálise lacaniana. Esses corpos, aparentemente “invertidos” no modo de trajar, discutem outro olhar sobre a individualidade, tornando-a uma dividualidade.
Conceito proposto por Maria Beatriz de Medeiros (2008) e pelo Grupo de Pesquisa Corpos Informáticos, o divíduo configura-se pelo grau de subjetividade não orientado a partir de um isolamento da unidade que caracteriza o indivíduo, mas uma subjetividade aberta e processual, em performance, que se divide, se parte, se fragmenta, por estar o corpo do indivíduo aberto ao encontro, não somente com outro corpo, mas com outros espaços, outros objetos, outros comportamentos.
Divíduos, os performers da Cia. Excessos no espaço da rua a beijarem seu reflexo apresentam outros espaços indiciais de compreensão daquela subjetividade que acaricia a sua própria imagem, enquanto a decompõe e fragmenta em distintas possibilidades de sentido e leitura. Da mesma maneira como os performers jogam com os elementos de composição de suas imagens, (trans)vestindo a escolha de roupas que abrem outra possibilidade de leitura do corpo de cada um deles, a ação de Reciprocidade Desalmada questiona a própria situação de conceituação ou de classificação do corpo, e faz isso criando entradas e buracos na imagem da superfície que o espelho plano projeta.
Ao acionarem essa operação, se aproximam da proposta de Gianluca Cuozzo (2007), ao refletir sobre a literatura de Paul Auster. Cuozzo afirma: “Toda definição, por assim dizer, é o dobro (linguístico, escritural) da coisa, não obstante também o seu nada; o nome, com efeito, duplica a coisa (de fato ‘vanificando-a’) como um espelho, sem poder nunca captar o sentido” (CUOZZO, 2007: 5).
Assim, ao pensarmos na imagem e no corpo dos sujeitos (mulheres e homem) envolvidos nessa performance, entramos num espaço de divisão também verificado no próprio discurso de gênero que projetaram, questionando as definições socialmente aplicadas à leitura dos seus corpos por meio de suas aparências e implicando a incapacidade dela de captura da ambiência múltipla presente no desejo e na subjetividade desses corpos.
Ao mesmo tempo, a performance brincou com a ideia da definição como dobro, isto é, infere, pelos modos como esses corpos se vestem e se mostram em sua superfície, a presença múltipla da autoimagem, do trajar, que é a emergência de um desejo manifesto e exposto na própria pele.
Nesse sentido, Reciprocidade Desalmada nos sugere, de fato, uma rebelião dos corpos, dos objetos, das coisas contra suas próprias imagens, parafraseando Cuozzo, ou ainda contra as palavras vazias da escritura do desejo e da experiência desses corpos que tentam, de alguma forma, comportá-los.
Assim, a performance projetou, com sua ocorrência, uma falência mítica da procura narcísica do prazer na própria imagem, tal qual se projeta sobre a superfície refletora, pelos beijos que apontaram a procura dos corpos dos performers por uma outra imagem, para além do dobro-nada da imagem oferecida pelo espelho. A performance, como carícia, investigou o traçado de outras travessias da própria imagem, desviando-a daquilo que é dado de imediato pela luz refletida e procurando potências de outras formas de vida no corpo.
Ao propor que o objeto mediador dessa relação seja o próprio espelho, a ação da Cia. Excessos traz outras prospectivas também para aquele que observa e assiste à ação, enfatizando a noção de que, ao olharmos a realidade, estamos olhando a nós mesmos, ou seja, nosso modo de olhar os objetos, corpos, ambiências do mundo é nosso porque imprime aquilo que somos, vivemos e experienciamos na superfície e nos contornos do que vemos. Ao vermos o mundo, vemos a nós mesmos vendo o mundo; ao vermos o corpo do outro, o contaminamos com o nosso próprio.
Essa possibilidade de leitura presente em Reciprocidade Desalmada parece nos trazer também a potência de um pavor do escritor argentino Jorge Luís Borges, que temia os espelhos por considerá-los uma ameaça à realidade e àquilo que se sabe de si. Longe de ser um temor que denota valor positivo a uma realidade fixa e dada, o pavor de Borges se anuncia diante do estar perdido de si, como individualidade, e simultaneamente à beira de um eu dividido, desviado na direção de uma desconhecida subjetividade.
O temor ao qual nos referimos é aquele do estar à beira do abismo, o abismo de todas as possibilidades do que podemos vir a ser. Esse temor de divergência da realidade tal qual é na direção de outros pontos, zonas de mutação em permanente movimento, é, ao mesmo tempo, o sintoma da potência de uma transformação que acontece e se faz presente na performance da Cia. Excessos.
Também se pode afirmar em Reciprocidade Desalmada que a extensão do tempo de encontro e carícia entre o corpo e a imagem abismal, que é tudo o que se pode ser e também é nada, que é o eu e o outro, não é a extensão de uma única mudança, mas de uma divisão em contínua progressão; o divíduo não cessa de se dividir e em cada encontro entre o eu-corpo e o eu-imagem cria um distinto fragmento, outro ponto de referência e de mutação através do qual é possível ler aquele corpo. O corpo no curso de uma hora de performance não permanece o mesmo, e sua ação imprime outra presença transformada sobre a imagem que devolve o espelho.
Essa realidade do espelho tão presente em nosso mundo na contemporaneidade, nas vitrines de lojas, nos shoppings, inclusive nos aparelhos eletrônicos, como celulares e tablets (os chamados blackmirrors), parece advir de um princípio foucaultiano de constante vigilância e afirmação do corpo no espaço de consumo, não apenas do consumo de mercadorias, mas do consumo de si mesmo, de sua própria imagem.
A superfície do espelho aparece nessa linha de pensamento como produto e produtora de uma vigilância do sujeito com relação à imagem do seu corpo como ele vê em atrito com outra imagem afirmada segundo um paradigma de construção da propaganda e mídias; uma imagem branca, magra, (hetero)sexualizada e sorridente (PHELAN, 1993).
Nesse ponto, não se trata daquilo que se vê, mas do que é tido como virtualmente invisível, naturalizado e entranhado, a ação que está contida no que vemos: o modo como nos vemos. Essa ação de performance, de encontrar em si uma brecha entre o que é visível e naturalizado e aquilo que não se vê, é mais uma das passagens encontradas em Reciprocidade Desalmada. Essa ação complexa se revolve na performance dos corpos, que defronte do espelho não investigam apenas aquilo que são, mas também o modo como optam por ver o que são.
Assim, na imagem caleidoscópica (CUOZZO, 2007) – fragmentada, multiplicada, dividida – do performer diante do espelho, se confrontam a presença e imagem do corpo, o olhar como espaço de projeção do eu, e as ações contidas nesse olhar que nos fazem ver o mundo como vemos, tudo isso no processo abismal de perder-se de si em direção a um vir a ser.A recíproca do espelho não é verdadeira, e a verdade num sentido filosófico perde sua posição como valor, como espaço metafísico de unicidade, transvalora-se num processo de cisões e fragmentações de um divíduo. A recíproca do espelho, dobro-nada das leituras postas na superfície do corpo dos performers, se desmonta e diverge de si mesma, se divide em várias realidades e linhas dessa presença inquieta e movente do corpo.
BIBLIOGRAFIA
AQUINO, F.; MEDEIROS, M. B. “Parafernálias: composição urbana e uebarte iterativa”. Revista Polêmica, v. 22, n. 1, 2008.
CUOZZO, G. “‘O dobro ou nada’ – o mundo caleidoscópico de Paul Auster”. Cadernos do LINCC, v. 1, n. 1, 2007.
FOUCAULT, M. História da sexualidade II – O uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984.
NIETZSCHE, F. Ecce homo. Trad. Paulo César Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
______. Genealogia da moral: uma polêmica. 9. ed. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
PHELAN, P. Unmarked: the politics of performance. London-New York: Routledge, 1993.