Tales Frey

“‘O corpo nunca existe em si mesmo’, uma conversa com Tales Frey”, por Pollyana Quintella (2020)

 

Esta entrevista de Pollyana Quintella foi publicada em: a palavra solta (30 de setembro de 2020).

 

Tales Frey (Catanduva-SP, Brasil, 1982) é um artista transdisciplinar cuja prática transita entre as artes cênicas e visuais. Em suas performances, o corpo é elemento central de investigação, seja contrariando convenções ao redor das categorias de gênero e sexualidade, seja exercitando a si mesmo como plataforma de ficção e criação: corpo-singular; corpo-delirante.

A conversa que segue abaixo aconteceu originalmente no dia 27 de agosto como parte da programação de debates da SP-ARTE 2020. Decidimos agora desdobrá-la em texto. São muitas as questões que abordamos, da formação de Tales como artista aos recursos presentes em seus trabalhos, a importância dos indumentos na construção de suas performances, o corpo no espaço público, as negociações entre o individual e o coletivo. Gosto de pensar que esse é um diálogo infinito, que não cessa, e o que aqui se apresenta é apenas parte de uma interlocução em processo.

 

POLLYANA QUINTELLA: Tales, como começou a sua pesquisa em torno do corpo? Sua formação passa pelo teatro e pelas artes visuais, gostaria que você falasse um pouco sobre esse encontro entre campos.

 

TALES FREY: Ainda criança, eu recebi influências muito significativas no âmbito familiar. A minha mãe é professora de Educação Física e, então, a atenção sobre tudo o que diz respeito ao corpo na minha prática artística veio dela sem nenhuma dúvida. Ela teve uma academia de ginástica chamada Corpus no final dos anos 80 e início dos 90 e eu via de perto todo o funcionamento do ambiente voltado para as atividades físicas e prestava atenção em tudo daquele contexto.

A minha mãe criou um grupo de dança vinculado à academia de ginástica e, inclusive, as minhas duas irmãs dançavam também nesse coletivo, que participava de festivais e demais eventos da área. Como espectador, eu sempre acompanhava tudo e, como filho e irmão caçula, eu estava sempre com as mulheres da casa assistindo a alguns ensaios, acompanhando os processos desde os desenhos de figurinos em papéis, testes de tecidos, até a escolha de músicas, enfim, eu estava de alguma forma presente nas etapas todas: desde os esboços dos croquis até o momento da apresentação da coreografia concebida. E isso tudo certamente me influenciou demais.

O meu avô era advogado, político progressista, professor de história e geografia, tocava violino, escrevia e recitava poemas próprios em saraus. Eu admirava o desempenho dele, a performance social e artística dele, o modo como ele projetava a voz em público e como fazia observações pertinentes. Embora ele fosse uma pessoa totalmente calma e que quase sempre estava em silêncio, ele não precisava nunca pedir atenção ao iniciar alguma fala, porque as pessoas se interessavam logo pelas suas ideias sempre muito éticas. E eu amava escutar o meu avô; ele era extremamente erudito e tinha interesse por assuntos variados e, no dia em que verbalizei para ele que eu queria fazer teatro, ele imediatamente me incentivou a entrar em algum grupo local e, inclusive, indicou algumas faculdades de artes cênicas.

Em 1993, ainda com 11 anos, eu comecei a fazer teatro amador em Catanduva, interior de São Paulo. Eu já tinha interesse por interpretação, encenação, indumento, luz, cenário, contrarregragem, sonoplastia etc. Tudo mesmo me interessava no teatro.

Com 18 anos, eu já tinha algumas experiências como ator em montagens locais e estava desenhando cenários e figurinos para projetos da prefeitura. Aí, em 2003, fui fazer faculdade de Direção Teatral na UFRJ no Rio de Janeiro e, ao mesmo tempo, eu cumpria cadeiras do curso de Indumentária. Fui gradativamente percebendo o meu interesse mais interdisciplinar neste período. Eu fazia diversos cursos livres e estágios ao mesmo tempo, de iniciação científica no Museu da Vida na Fiocruz na área de interpretação à workshops no SESC Copacabana e outros lugares, de corte e costura para carnaval à acrobacia aérea na Intrépida Trupe.

Na graduação em Direção Teatral, eu tive contato com a Eleonora Fabião, que é uma artista e pesquisadora de reconhecimento indubitável na área da performance, e ela acabou por me fazer confirmar que o meu interesse mesmo estava nesta linguagem artística, onde eu conseguiria reunir todas as habilidades cênicas e visuais numa expressão única.

Até 2008, embora eu já experimentasse a expressão da performance com certa frequência para expor as minhas ideias e tivesse admitido que esse era um gênero artístico que me interessava muito, o teatro é que me dava retorno financeiro mais direto até então. Embora eu tivesse as minhas criações autorais, eu sobrevivia trabalhando nos bastidores, com adereço cênico para o Miguel Falabella e Cláudio Tovar no Rio de Janeiro e, em cena, com o Antonio Abujamra, sendo ator e integrante na equipe de assistência de direção.

Nessa época, eu já estava gradualmente percebendo maior interesse pelas artes visuais e, quando eu me mudei para Portugal, vim fazer um mestrado em Teoria e Crítica da Arte na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto e aí, estando num curso tão teórico e não tendo o amparo institucional local para apresentar as minhas criações autorais, eu acabei buscando o espaço urbano para experimentar algumas ações, que eram sempre documentadas.

Os registros inicialmente eram meros materiais de análises contextuais, mas fui percebendo que eles poderiam ganhar autonomia como peças expositivas e, aos poucos, fui compreendendo o vídeo e a fotografia como dispositivos possíveis. Depois, entendi outros vestígios como expansões da ação ao vivo, os quais poderiam carregar traços das ações iniciais, mas que poderiam ter força autônoma como obra independentemente da performance.

A partir do meu doutorado em Estudos Teatrais e Performativos pela Universidade de Coimbra, direcionei todo o meu entusiasmo para a minha própria prática em arte e, assim, enxerguei de vez como a performance é o meio de junção do meu interesse pelas artes cênicas e visuais e, mesmo quando não se trata de uma criação para acontecer ao vivo, há sempre ou quase sempre a noção de performatividade.

 

POLLYANA QUINTELLA: Um dos seus trabalhos tem o título “O Corpo Nunca Existe em Si Mesmo”. Me parece um mote importante para analisar sua pesquisa artística como um todo. Afinal, você cria situações para que o corpo possa de fato existir, contrariando convenções e alargando os limites do possível, do permitido. Entre a tensão e o delírio, creio que seu trabalho nos ensina que não existe corpo a priori que não seja inventado, ficcionalizado, negociado. Pode falar um pouco sobre essa perspectiva?

 

TALES FREY: Com muita frequência, eu busco falar de um corpo constituído de uma interioridade instável, ou seja, um corpo que exemplifique a impossibilidade de uma identidade fixa, exibindo em cada corpo múltiplas identidades. E procuro sempre evidenciar uma exterioridade construída que surja conforme os anseios que advenham para esses corpos. Sempre ou quase sempre, falo sobre como o corpo é um estado provisório de uma coleção de informações muito complexa que o funda como tal. Esse estado transitório está necessariamente vinculado aos ajustes todos que acontecem entre o ambiente e a interioridade, ou seja, há uma ponte de diálogo entre o que está ao redor de um indivíduo e a sua interioridade.

Inclusive, há uma afirmação da Helena Katz que faz muito sentido para confirmar isso que eu digo, na qual ela diz que “quando um corpo muda, quer dizer que tudo ao redor já foi transformado” e inclusive o título do trabalho que você menciona vem dessa ideia da Katz e que, nas palavras de Paul Preciado trazidas a mim pela Hilda de Paulo, nós encontramos um sentido análogo, onde ele diz: “aceitar que a mudança que acontece em mim é a mutação de uma época”. Tanto Katz como Preciado ratificam como o corpo pode ser um indicador das diversas transformações numa sociedade.

E sendo a performance uma expressão em que o corpo é sujeito e é também objeto da obra, ela é um meio bastante eficaz para refletirmos sobre as transformações sociais. Acho muito perspicaz da sua parte identificar esse trabalho como uma criação central para pensar a minha prática de modo geral, porque de fato podemos ver nessa criação a concentração de interesses diversos que aparecem em outros trabalhos meus: a moda, o gênero, a obstinação física, o hibridismo artístico contemplando dança, escultura, som e, sobretudo, o corpo como cerne.

“O Corpo Nunca Existe em Si Mesmo” (2018) consiste na interação de cinco performers que, sob instrução, executam poses aleatórias com durações que podem variar entre 1 a 3 minutos e, fatalmente, os corpos se influenciam todo o tempo e, deste modo, a construção gerada é sempre única e sempre imprevisível mesmo estando submetida a uma proposição tão clara. Tudo isso realmente pode ser usado para pensar nas minhas criações artísticas em geral.

 

POLLYANA QUINTELLA: Me interessa também o fato de que você explora o corpo como um híbrido. Não é raro, em seus trabalhos, vermos recursos como o espelhamento ou a duplicação, que vão gerando um corpo estranho, que busca se livrar de estigmas, padrões sociais e expectativas pré-estabelecidas. Podemos dizer que você está interessado em performar uma singularidade menos subordinada?

 

TALES FREY: Creio que sim. Aos poucos, fui percebendo que esses corpos conectados vêm sobretudo criar encontros afetivos entre as diferenças e, assim, acabo por propor algo basilar do pensamento político que consiste em possibilitar convívios mais harmônicos entre essas diferenças. Então, eu mesclo as diferentes existências, fundindo corpos distintos, subvertendo binarismos mesmo quando eu enfatizo o tal binarismo que já é tão reconhecível nos códigos sociais e o utilizo, mas de modo desajustado.

Muitas vezes, eu crio a partir de uma desordem dessas vidas já socialmente aceitas e ditas corretas ou exemplares e apresento existências que combinam outras maneiras possíveis nas suas constituições, então são junções que se apresentam de modo uno, sendo um corpo único que seja de uma só vez feminino, masculino e que tenha a feminilidade e a masculinidade mais fluida. Apresento tudo isso em um corpo único constituído por vários outros justamente para afirmar um caráter múltiplo de existência como uma fuga das lógicas vigentes. Nesse aspecto, estou disposto sim a performar singularidades não subordinadas a um sistema opressor.

 

POLLYANA QUINTELLA: Gostaria que você falasse da importância da vestimenta, do “indumento”, como você chama. Muitas vezes ele é a pele que conecta um corpo ao outro, produzindo um encontro que exige negociação. Como você pensa o papel desses indumentos?

 

TALES FREY: Esses looks que eu crio têm uma clara função performativa, ou seja, são trajes concebidos para trabalhos de arte ao vivo, porém, ao mesmo tempo, eles permitem composições escultóricas em que a matéria corpórea harmonizada com o indumento se torna também escultura.

Sobretudo, esses trabalhos propõem vivências para que as pessoas ali acopladas possam obter experiências transformadoras, mas sem que essas transformações sejam apenas formais. Enquanto há a ativação de cada look, há sempre um trato estabelecido entre as partes e, então, à medida que uma performance que envolve um indumento é repetida, o grupo de pessoas que ativa cada traje pode ser alterado e, aí, tudo ocorre de um outro modo, mesmo que a proposição seja sempre respeitada. Ainda que sejam as(os) mesmas(os) participantes ativando cada indumento, cada experiência é única, porque sempre há a experiência relacionada ao entorno, sempre é um ritual único.

“Ponto Comum” (2017), por exemplo, consistia inicialmente numa peça de roupa para ser vestida com uma das minhas irmãs, porque tinha relação com uma situação muito particular. Como eu nasci no dia do aniversário de um ano de idade dela, nós criamos diversas brincadeiras por conta disso, então nós nos declarávamos gêmeos para os nossos grupos de amigas e amigos e brincávamos de “Supergêmeos” da série de desenho animado Superamigos, fazíamos de conta que podíamos ativar poderes ao unirmos nossas mãos num toque. Isso tudo me conduziu a pensar no rito do meu aniversário de 35 anos com a minha irmã através da performance “Ponto Comum”.

Esteticamente, antes de criar a ação “Ponto Comum”, eu estava já explorando a elaboração de objetos e condições que gerassem movimentos e, consequentemente, alguma relação com a dança, mas também com a escultura, ultrapassando a ideia clássica de esculpir alguma matéria, porque passei a utilizar o corpo humano como suporte para criar relevos, definir formas e espaços, proporcionando tridimensionalidade aos trabalhos que passei a produzir.

Quando eu cheguei com o indumento para ser experimentado pela primeira vez com a minha irmã para a ação “Ponto Comum”, ela acabou por me conduzir a uma série de movimentos ensaiados, gerando assim uma coreografia estruturada e isso só aconteceu por conta de uma negociação ocorrida. Se eu não tivesse ela como uma participante fundamental nesse trabalho, certamente não aconteceria do mesmo modo a performance. Talvez nem existisse uma coreografia ensaiada, mas somente movimentos gerados naturalmente pelo uso do indumento.

Nessa ação, podemos intuir a cissiparidade de uma célula, uma fissão binária, que significa o nascimento, o surgimento de duas vidas distintas, mas também podemos intuir o contrário, a fusão de dois corpos e, também, o oposto do surgimento de duas vidas. Essa performance tem relação com as anteriores em que eu já conectava corpos: “O Beijo” (2006), “O Outro Beijo no Asfalto” (2009), “F2M2M2F” (2015), “Be (on) You” (2016), “Estar a Par” (2017), “Finitas Contagens para Infinitas Variações” (2017), sendo que esta última foi o que motivou a equipe de produção da exposição “Do It”, com curadoria do Hans-Ulrich Obrist, a me convidar para ativar a obra Untitled (1995), do artista austríaco Erwin Wurm. De maneira inevitável, isso me influenciou muito no desdobramento da peça “Ponto Comum” para o formato participativo com nome “Ponto Comum – Indumento Relacional”, obviamente retomando princípios já vistos na Lygia Pape, Lygia Clark e outras e outros artistas.

No trabalho “Sissyparity” (2020), há uma estética já recorrentemente utilizada por mim, mas só há o meu corpo na composição. Acontece que eu crio uma ilusão através de um efeito de colagem, embora seja até relativamente fácil perceber o jogo ilusório proposto por meio da edição. Mas a premissa de fundir identidades fica evidente neste trabalho também, porque mesmo sendo só o meu corpo em “Sissyparity”, ele próprio é uma identidade volátil em mutação constante.

 

POLLYANA QUINTELLA: Nessas conexões, o individual e o coletivo estão em conflito, em constante negociação. Chamo atenção para a tensão que existe quando você convida outras pessoas a participar da performance, pois isso tende a suspender seu controle. Em “Estar a Par”, ou mesmo em “Triunfo”, você transforma oponentes em aliados. No entanto, embora esses trabalhos existam como performance eles também apresentam dispositivos que podem ser exibidos com autonomia, como a luva de boxe ou os pares de sapatos, por vezes convidando o público a experimentar. Como você pensa esse convite ao outro?

 

TALES FREY: Curiosamente, assim como a ação “Ponto Comum” em que eu só executo a performance com a minha irmã, “Estar a Par” eu só realizo com a Hilda de Paulo – com quem sou casado – e “Triunfo”, eu só executo com o meu sobrinho Vítor Moraes, porém todos indumentos/adornos – que são cernes das ações – são resquícios usados como peças autônomas que podem ser ativadas pela audiência em uma exposição a partir de instruções.

“Estar a Par” surgiu durante a primeira apresentação da performance “Be (on) You” (2016) e esta, por sua vez, é um desdobramento de “F2M2M2F” (2015). Em “F2M2M2F”, eu propunha que um corpo masculino vestido com adornos e indumentos ditos femininos e um corpo feminino vestido de modo contrário se beijassem por uma hora ininterruptamente.

Corporalmente, a minha dificuldade era manter a altura da minha boca nivelada com a altura da boca da parceira convidada, porque faço o uso de um par de saltos e, também, porque as performers convocadas são geralmente bem mais baixas e, então, os passos não são ajustados. Para a Bienal de performance HorasPerdidas, em 2016, em Monterrey, no México, eu propus uma ação que funciona de modo similar, embora sejam dois corpos masculinos significados na cisgeneridade masculina (o meu e da Hilda de Paulo). Como temos uma relação afetiva de longa data, os nossos passos estavam logo tão ajustados que a imagem de um par de sapatos conectados pelos bicos me ocorreu imediatamente.

“Estar a Par” inicialmente seria apenas um objeto para ser usado em performance mas aos poucos percebi que além do público poder se reconhecer em nós ao presenciar a ação, ele poderia também experimentá-la.

Eu nunca propus ensaio de nenhum movimento e tudo que surgiu de mais inusitado – incluindo saltos, giros e corridas – veio de um fluxo corporal totalmente livre e, então, tudo despontou ao vivo e na frente das pessoas. Na primeira apresentação no Athens Museum of Queer Arts em Atenas, descobrimos os primeiros saltos; no 22èmes Rencontres Traverse Vidéo – “L’Expérimental recherche/art” em Toulouse na França, exploramos diversos sons; em algumas unidades do SESC SP e Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica no Rio de Janeiro, estudamos diferentes corridas; na BienalSur em Buenos Aires, criamos movimentos frenéticos e menos harmoniosos e, na nossa última apresentação em 2019, no Akureyri Art Museum na Islândia, criamos mais oscilações dos ritmos.

Acho interessante como, ao ativar o trabalho, através de uma proposição tão lúdica, eu já disponibilizo para a audiência uma exemplificação sobre o viver em uma democracia e, depois de permitir a participação do público, ele próprio pode experienciar essa prática que envolve conflito e redefinição até acontecer o consenso. Esse é um trabalho essencialmente político.

 

POLLYANA QUINTELLA: É curioso como você incorpora alguns dados biográficos no processo de trabalho. Falamos da sua irmã, da academia de ginástica da sua mãe, e há também as suas performances anuais de aniversário, ou mesmo seu casamento com a Hilda de Paulo, que foi ritualizado com uma performance. Qual o limite entre uma coisa e outra? Mais do que isso, te interessa estabelecer esses limites?

 

TALES FREY: Acho que não me interessa o limite entre uma coisa e outra. A performance é pautada pela ausência da interpretação teatral, então o que vemos numa performance é o artista a executar uma ação, acho natural que a minha vida esteja imbricada com a arte que proponho.

Gosto de criar meus rituais ao meu modo. Desde 2013, eu tenho realizado os meus aniversários como performances. Inicialmente, como rituais de passagem (que de fato são), mas são também rituais estéticos, artísticos quando apresentados como performances públicas e, ao serem repetidos, confirma-se como rituais artísticos. Fiz o meu casamento com a Hilda de Paulo também como uma performance, também transformando o rito de passagem em arte. Acho muito interessante como o ritual tem um poder de eficácia numa transformação, porque a mudança é irrevogável, ou seja, ao me casar, por exemplo, não posso jamais retomar o estado civil de solteiro; posso ser divorciado, viúvo, mas solteiro jamais.

 

POLLYANA QUINTELLA: As performances com os beijos no espelho nos convidam, ironicamente, a projetar nosso eu individual no outro. Mais uma vez, identidade e alteridade se confundem. O mesmo acontece com os trabalhos interessados em jogar com expectativas em torno da questão de gênero, você investiga a produção de diferença nos corpos. Em alguns casos, esses números acontecem no espaço público e consequentemente tornam os corpos dos performers vulneráveis. Como é lidar com a condição de risco e com a afetação imprevisível de um público mais amplo?

 

TALES FREY: Isso tudo começou em 2006, quando houve uma exposição chamada “Erótica: Os Sentidos da Arte” no CCBB-RJ. Naquela exposição em que uma foto gerada a partir da performance “Desenhando com Terços” da Márcia X foi censurada. Eu e a Cristine Ágape decidimos apresentar um beijo com duração de 30 minutos ininterruptos no foyer do espaço, usando trajes trocados por convenção social: eu com roupas ditas femininas e ela com roupas ditas masculinas.

Ali, embora houvesse um estranhamento por parte das pessoas que circundavam os nossos corpos, o beijo era comedido, os trajes se passavam por corriqueiros. Pedimos para a pessoa encarregada dos registros para estar sempre discreta, sempre diluída no meio das pessoas. Optamos por ativar a ação num momento em que havia uma fila que se formava 30 ou 40 minutos antes do início da distribuição gratuita de bilhetes para uma sessão de cinema. Estávamos provocando a instituição, mas estrategicamente, não dávamos motivos plausíveis para sermos reprimidos pela equipe de segurança.

“O Beijo”, apesar do tempo de duração relativamente longo, consistia num beijo comedido e os trajes eram corriqueiros apesar da subversão. E, ainda que as pessoas do local pudessem pensar que a ação era uma mera surpresa não convencional do acaso, pelo fato de estarmos no interior do edifício e centralizados na área no foyer principal do edifício, algum estatuto de arte era atribuído ao que ocorria por mais que a performance não propusesse grandes afetações.

Em 2009, já no Porto, dei uma roupagem nova ao trabalho, mudando inclusive o título para “O Outro Beijo no Asfalto” e, por levar a ação para o espaço urbano, tive que criar estratégias para resguardar os corpos dos performers no espaço público e, então, pensei em trajes de casamento, o que deixava a ação mais cênica, portanto menos diluída na massa e, assim, qualquer reação muito agressiva seria logo vista por todas as pessoas na rua. Diferentemente da arquitetura do CCBB-RJ, eram os trajes que davam algum estatuto de arte à situação e, com isso, protegiam os nossos corpos.

Repetindo a ação em outros contextos, percebi como o trabalho pode funcionar como um poderoso meio para realizar pesquisas antropológicas, pois testamos reações muito distintas em cada sociedade apresentada. E mesmo mantendo a estratégia de usar códigos que deem algum estatuto artístico ao trabalho, acontecem reações menos pacíficas.

Em Belo Horizonte, um padre tentou interromper a ação durante o Festival de Performance de BH de 2011 e, sem interromper o beijo de 30 minutos, eu e a performer convidada escutávamos toda a discussão entre o padre e algumas pessoas da produção do evento. Na Suécia, durante o Stockholm Fringe Festival 2011, houve bastante reação agressiva. Os performers que ativaram o trabalho foram empurrados por um transeunte e um outro cidadão berrou algo como: “Isso não é arte”.

Durante a apresentação de “Be (on) You” em Monterrey no México em 2016, uma pessoa fez gesto de soco muito rente aos nossos rostos, uma outra, completamente embriagada, iniciou um discurso neopentecostal confuso, dizendo frases bíblicas mescladas a cantigas populares de chacota direcionada a homens afeminados. Numa unidade do SESC no interior de SP, uma mãe apontou a ação para o filho de no máximo 5 anos de idade e pronunciou bem alto: “Olha lá as bichonas”. Ao contrário das reações que denotam discordância relacionada ao teor do trabalho, na cidade de Wellington, a própria governadora geral da Nova Zelândia, sem denotar o menor preconceito, fez fotos da ação e as publicou na sua página pessoal do Instagram e Facebook, bem como na página oficial do governo.

Acho conveniente mencionar um trabalho chamado “Vestido” (2014/2015) para falar desse elemento da “vulnerabilidade”, pois foi um processo completamente pautado na visita de campo de modo totalmente imersivo, onde faço uma participação observante se pensar na análise antropológica.

Decidi visitar lojas de trajes de casamento de uma mesma rua da cidade do Porto, onde eu pedia para provar o vestido que estivesse em cada vitrine encontrada. Caso me permitissem, eu me fotografava com o traje diante do espelho do provador e, caso não me autorizassem, eu faria a foto da vitrine onde estivesse exposto o tal vestido.

O dispositivo pensado foi uma sequência de narrativas escritas sobre as situações vividas em combinação com cada imagem captada, ou seja, das vitrines das lojas que não me permitiam provar a roupa e das imagens dos vestidos sobre o meu corpo. Não vivi situações de violência física e sei que isso está diretamente relacionado à condição de privilégio que possuo com relação a outros corpos dissidentes, com outras camadas de exclusões que eu não possuo, mas sofri violência simbólica ao obter respostas negativas, depreciativas sobre o fato de querer provar um vestido e com vocativos deduzidos como autorizados. Neste sentido, o trabalho revela um olhar para tais vivências de um modo muito particular, porque é a partir da minha própria experiência sobre um contexto específico.