Tales Frey

“Todo Amor que Houver nessa Vida”, de Raphael Fonseca (2012)

 

Este texto de Raphael Fonseca foi publicado em: eRevista Performatus (Inhumas, ano 1, n. 1, novembro de 2012, ISSN 2316-8102).

 

O círculo, desde Platão, é considerado uma forma geométrica perfeita. No Timeu, ele afirma:

 

De facto, a forma adequada ao ser vivo que deve compreender em si mesmo todos os seres vivos será aquela que compreenda em si mesma todas as formas. Por isso, para o arredondar, como que por meio de um torno, deu-lhe uma forma esférica, cujo centro está à mesma distância de todos os pontos do extremo envolvente – e de todas as figuras é essa a mais perfeita e semelhante a si própria –, considerando que o semelhante é infinitamente mais belo do que o dissemelhante. [1]

 

Com uma chave de leitura cristã, nitidamente devedora do pensamento platônico, Santo Agostinho discorre sobre as formas geométricas em Sobre a Potencialidade da Alma:

 

Quanto à figura mais excelente, não duvidará que seja aquela cujo perímetro está equidistante do centro de tal maneira que qualquer ponto da superfície dista igualmente do centro, sem ângulos que impeçam a igualdade, de cujos centros podemos traçar linhas iguais para qualquer dos limites da figura. [2]

 

O círculo ou a esfera é a forma geométrica que engloba os astros, e está presente nas mais diversas representações cosmogônicas: é o sol, a lua, a Terra, é aquilo que possibilita que Saturno tenha anéis e se configure, em verdade, como uma série de círculos concêntricos. É casa também de Yin e Yang, conceitos do taoismo: escuridão e luz, oposição e completude, noite e dia numa mesma figura.

Essa mesma construção matemática dá forma a uma parte da arquitetura do Centro Cultural Banco do Brasil, situado no Rio de Janeiro, no centro carioca. Construção iniciada em 1880, o prédio funcionou, entre 1906 e 1986, exclusivamente para fins econômicos. Inicialmente uma Associação Comercial, funcionou também como Bolsa de Fundos Públicos e depois como agência deste que é o primeiro banco estatal criado em terras brasileiras. O CCBB-RJ, atualmente, pode ser considerado um dos mais importantes polos de cultura da capital do Rio de Janeiro, onde são apresentadas diversas exposições de artes visuais e mostras de cinema que passaram por disputada seleção pública de projetos. Nesse sentido, poderia ser chamado de “templo da cultura”, de modo equivalente à etimologia da palavra “museu”, ou seja, um “templo das musas”, local de preservação do conhecimento e perpetuação da memória por meio das imagens.

Voltando ao círculo e chegando à arquitetura: chama a atenção, nesse prédio, a rotunda que ilumina e coroa o foyer desse espaço. Trinta e três metros distanciam o chão da cúpula de vidro; o diálogo entre espaço interno erguido pelo homem e contemplação distante da natureza azul está dado. E qual a origem dessa opção arquitetônica? O mais célebre exemplo de prédios com uma rotunda (rotonda), ou seja, com base circular e uma cúpula, advém da Antiguidade romana e se encontra até hoje conservado. Trata-se do Pantheon, construído no século I a.C. e reformado no século seguinte. Como seu próprio nome aponta, tratava-se originalmente de um abrigo (panteão), ou melhor, um templo para todos os deuses do Olimpo. No século VI d.C., devido às diversas mudanças ocasionadas pelo surgimento e disseminação do cristianismo, o espaço foi rebatizado como Igreja de Santa Maria e Todos-os-Santos; o protagonismo, portanto, foi dado à mãe de Jesus e a todos os seguidores que se martirizaram pela propagação de seu nome. Para o filósofo neoplatônico Plotino (século III d.C.), Deus era o Uno e poderia ser representado pela luz – esse grande raio luminoso pode ser fruído nos dias atuais dentro do Pantheon devido a uma esfera que fica no centro da cúpula e emociona os turistas cristãos com suas máquinas fotográficas. Deus ainda pode ser luz.

Em uma noite de 2006, iluminados por luz artificial, mas no centro de um modelo arquitetônico que um dia foi alvo para a luz divina, a Cia. Excessos realizou uma performance. Dois corpos pousaram sobre o coração do foyer do CCBB-RJ e sustentaram um beijo por meia hora. O ato afetivo, que por si chamava a atenção pela centralidade espacial, tinha um dado que saltava aos olhos: após constatar a diferença de altura entre os indivíduos e considerar que o mais alto seria um homem e o mais baixo uma mulher (suspeita que se confirmava após um olhar mais detido), se percebia que uma curta saia xadrez era um elemento fora do conjunto.

Tales Frey estava vestido com um top amarelo e saia, ao passo que Cristine Ágape usava uma calça cargo e um gorro. Não se tratava, portanto, de afeto homossexual, mas um beijo heterossexual que se apresentava como um rápido desconcerto. Imagino que a reação do público que fazia fila para o teatro e que aparece ao fundo desse beijo no registro existente seja a mesma de quando mostro esse trabalho aos meus alunos. Em primeiro lugar, ouço algo como “Meu Deus, um homem e um travesti se beijando” e, segundos depois, alguém diz “Não, é um homem vestido de mulher”. Os pelos nas pernas são percebidos e freiam uma primeira reação preconceituosa do espectador. Dessa exclamação brota uma interrogação: “Por que eles estão vestidos desse modo? Por que não estão ‘normais’?”.

Esse parece o ponto que a Cia. Excessos também deseja questionar: o que é o “normal”? O que é “ser normal”? O que é uma roupa “apropriada” ao seu gênero? Mais do que isso, como se constroem os gêneros? Há espaço para essa discussão e para limites tão claros em uma cultura visual contemporânea que já coroou Madonna, David Bowie e Lady Gaga, e que cada vez mais questiona o próprio conceito de ambiguidade?

Realizar esse gesto artístico no centro do CCBB-RJ é como gritar em praça pública. O “templo da cultura” foi tomado e todos os passantes esbarrarão com um ato artístico de meia hora. Muitos sequer saberão que aquilo ali era arte, mas isso não é o mais relevante; importa saber que esses muitos também não apagarão essa cena (nojenta para alguns, heroica para outros) de suas memórias. O pobre Platão é colocado contra a parede: sobre o seu perfeito círculo, algo que se choca com sua afirmação de que “o semelhante é infinitamente mais belo que o dissemelhante”.

Ao levar em consideração a própria história da conceituação religiosa em torno do círculo e, além disso, da utilização da rotunda como elemento formal da arquitetura religiosa, podemos interpretar esse ato da Cia. Excessos como uma profanação – efêmera e singela, assim como a presilha colocada no cabelo do performer, que convida nosso olhar para o seu rosto e para a presença do seu bigode. Esse dado profano é ampliado quando se toma conhecimento de que esse trabalho foi realizado enquanto estava em cartaz a exposição Erótica – Os Sentidos da Arte: um trabalho de outra performer, Márcia X., que foi censurado. O registro de um de seus trabalhos mais famosos, Desenhando com Terços, em que a artista fazia o contorno de falos por meio da linearidade desses objetos sacros, ocupando o chão de uma sala, foi retirado do evento devido à pressão de autoridades católicas do Rio de Janeiro. Mal sabiam elas que outra ação, não emoldurada, de curta duração, mas que terá longa vida devido ao registro audiovisual e acesso público propiciado pela internet, foi realizada logo abaixo, no térreo da instituição, sem necessidade de mediação ou de elevador, fora das salas que permeiam as imagens com o estatuto da arte.

Se o Pantheon era um templo para todos os deuses, a Cia. Excessos realiza uma construção de imagem diversa com corpos e a lembrança proporcionada pelo vídeo. Sai a figura de “Deus” e entra o protagonismo do beijo. O panteão se metamorfoseia em “panamor” e é erguido outro monumento a toda forma de amor, a todos os amantes que já trocaram fluidos na história: homens com mulheres, mulheres com homens, homens com homens, mulheres com mulheres ou, mais do que isso, humanos com humanos. Um viva e esperança de dias melhores para, como diria Cazuza, “todo amor que houver nessa vida”.

 

NOTAS

[1] PLATÃO. Timeu – Crítias. Coimbra: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 2011, p. 102.

[2] SANTO AGOSTINHO, Sobre a potencialidade da alma (De quantitate animae). Trad. de Aloysio Jansen de Faria. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 58.