Tales Frey

“Barking Dogs”, de Juliana Pinho (2012)

 

Este texto de Juliana Pinho foi publicado em: Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais (Vol. V, n. 43, abril de 2012, ISSN 1983-0300).

 

No princípio não era o Verbo. No princípio era o ecrã de televisão parado, com um conjunto de riscos coloridos em contagem para a abertura da emissão. Em nosso princípio, no princípio de uma sociedade sem grandes princípios, a televisão marca o ritmo dos acontecimentos. Mas não fiquemos por aqui, pois também no princípio o autor e ator se apresenta: ele é Tales Frey a interpretar Tales Frey. Mas não é por habitar essa personagem, como numa consubstanciação, que se torna mais fácil para Tales interpretar Tales. O autor principia com os avisos iniciais – cinco avisos, bem explicados, como bem aberta está a sua mão – tal como numa liturgia. Aqui, este Te Deum é para a glória de Tales Frey, que durante a sua performance alcança o estado quase virginal (como podemos ver quando se despe, qual Adão antes do pecado).

Após os avisos, ditados de cima de um banco, como o clero no púlpito, Tales começa a nos mostrar cada um dos cinco episódios, intercalando-os com uma pequena coreografia que tem muito em comum com a de Jan Fabre (My Movements Are Alonelike Street Dogs), mas que, aplicada como introdução para cada um dos episódios, tem algo também de obsessivo-compulsivo, algo de extremamente doentio. Aos poucos percebemos que Tales vai se transformando num exemplar canino. E por que o cão? O cão está presente em todos os episódios. Ele atinge o grau de Adão, mas logo em seguida entra na zona diametralmente oposta à do Homem na escala da evolução. O cão é a posição que ele ocupa do outro lado da escala. Já nas histórias que conta, todas relacionadas com cães – autobiográficas ou não –, Tales Frey passa de uma posição de comiseração e carinho endereçada aos diferentes cães que as habitam para uma atitude impiedosa.

Quando nu, Tales-cão, que não esquece sua origem humana, corre a vestir-se, mas demasiado tarde, já que incorpora parte da natureza canina. Não se choca, por isso, com a passagem do célebre episódio de Um Cão Andaluz, de Buñuel. No espetáculo Espasmos Caninos, que teve lugar no Porto, no dia 25 de março, no Tômbola Show, realizado no Espaço de Intervenção Cultural Maus Hábitos, o público não pareceu particularmente incomodado com a imagem do corte de olho que o filme tornou célebre. Note-se que este olho não era, no filme, um olho humano. Era o olho de um animal. E nesse processo de transformação, que passa pelo dono do cão (Tales Frey) vestir e calçar a pele do cão, apercebemo-nos da referência concreta a Deleuze. O público passa então a entreter e alimentar o cão com um alimento-objeto, e o cão, como que treinado, tenta acumular e transportar tudo o que recebe do público. Acontece porém que os cães treinados, quando aliciados por dois objetos, não tentam devolvê-los ao mesmo tempo, numa só viagem. Mas o cão com o qual nos ocupamos neste artigo, que ainda é homem, que vive as duas naturezas, tenta fazê-lo em vão. Num último estertor, e numa alusão ao filme Último Tango em Paris, opta por tentar transportar o objeto dentro das calças. Note-se que os objetos em questão são pacotes de manteiga.

Na apresentação que teve lugar no Porto, a interação com o público foi constante e por vezes até desarmante, já que o público riu quando das histórias mais pungentes de cães mortos. Estaremos nós, como Tales Frey, em transformação canina? Se sim, uma nova liturgia irá erguer-se: a liturgia que nos permite amar um animal como se fosse da nossa natureza, mas nos enclausura numa espécie de amor incondicional que não obtemos dos outros.