Este texto de Julia Pelison foi publicado em: arte ref (Janeiro de 2015).
Através de uma arte-política queer engajada, determinada a suscitar o pensamento crítico contra uma relação de poder controlador/disciplinar amparado por uma lógica proporcionada pelos regimes de normalização, a Cia. Excessos apresenta, na unidade do SESC Ribeirão Preto, de janeiro a março de 2015, a exposição Beija-me, que traz uma irônica súplica pelo gesto de carinho como um ato que substitua as tantas pedradas, porradas e “lampadadas” que ainda são, brutalmente, aplicadas contra o ser humano taxado de abjeto em nossa sociedade. A temática insistente (quase obsessiva) explorada em uma série de ações que resultam na exposição funciona como um minucioso estudo antropológico e, sobretudo, social, pois evidencia como cada ambiente especulado reage e lida com uma determinada situação de beijo, sendo que, em todos os casos, o elo entre os lábios expõe uma relação que questiona normas vigentes mesmo quando trata-se de um beijo heterossexual.
Com O Beijo (2006), O Beijo II (2007), O Outro Beijo no Asfalto (2009), Reciprocidade Desalmada (2010), Beija-se (2012), Aliança (2013) e Romance Violentado (2010), a heteronormatividade, a chamada “heterossexualidade compulsória” e o heterossexismo são postos em xeque.
Lidar com a diferença é incomensurável e a Cia. Excessos procura harmonizar a relação entre os subalternizados e os hegemônicos através das situações conflitantes criadas, propondo que enxerguemos nós mesmo no Outro, sugerindo a aceitação de uma perspectiva não normalizadora.
Foi em 2006, depois de um ato de censura por parte do Centro Cultural do Banco do Brasil, ao retirar uma obra de Márcia X. da exposição Erótica: Os Sentidos da Arte, que Tales Frey e Cristine Ágape resolveram se beijar por trinta minutos ininterruptos no foyer do CCBB com seus trajes convencionalmente trocados segundo uma lógica binária e, assim, surgiu a performance O Beijo, que depois foi desdobrada em O Beijo II para, posteriormente, originar a ação O Outro Beijo no Asfalto, que extrapola as barreiras institucionais para consignar a primeira intervenção pública realizada pela companhia e, também, a forte parceria entre Paulo Aureliano da Mata e Tales Frey, bem como a oficialização da Cia. Excessos.
Com tais ações, Tales, junto da Cia. Excessos, prova que a sociedade reage com menos tolerância e compreensão com relação ao rompimento das normas ou convenções de gênero do que com relação à orientação sexual em si (MISKOLCI, 2012: 41). Já com Reciprocidade Desalmada e Beija-se, a estratégia é analisar o narcisismo tão presente em nossa atualidade e a nossa incansável relação com o espelho, bem como os tantos elos possíveis: ela e ele, ela e ela, ele e ele, entre outros tantos possíveis elos que rompem os limitadores preceitos já ultrapassados.
Aliança, um ritual de casamento que se inicia numa galeria de arte e termina num cartório, é o desfecho desta série e o timbrar de uma relação que envolve o amor íntegro e uma fundamentada parceria artística que busca perseverar, fixar e persistir como uma tatuagem, tal qual a registrada na body art Romance Violentado, de Paulo Aureliano da Mata, que foi coerentemente incorporada à exposição. Beija-me, embora reúna resquícios de eventos inicialmente concebidos para serem vistos ao vivo, transporta o teor despertado na experiência da vivência para uma viva análise documental.
BIBLIOGRAFIA
MISKOLCI, Richard. Teoria queer: Um aprendizado pelas diferenças. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.