Tales Frey

Em Estado de Guerra (2016)

 

Exposição Em Estado de Guerra (2016), de Hilda de Paulo/Paulo Aureliano da Mata e Tales Frey. Teatro Académico de Gil Vicente, Coimbra, Portugal. Fotografias de José Cruzio

 

Esta exposição reúne obras dos artistas que compõe a Cia. Excessos (Paulo Aureliano da Mata e Tales Frey), cuja produção – criada a partir da performance e body art – dá-se de forma transdisciplinar, combinando ações ao vivo com materializações tangíveis puramente documentais ou como veículos cruciais para estabelecerem um elo entre o artista e o observador, através das fotografias e vídeos.

A unidade conceitual dos trabalhos expostos está amparada por correntes políticas que tem base nas teorias de gênero (feminismo e teoria queer).

Associada à exposição, há a apresentação da performance Indestrutível seguida de uma conversa com os artistas mediada por Fernando Matos Oliveira. Também, durante o período da exposição, há a realização da performance F2M2M2F.

 

FICHA TÉCNICA

Hilda de Paulo/Paulo Aureliano da Mata e Tales Frey: Em Estado de Guerra | Curadoria/Organização: Cia. Excessos | Mediador: Fernando Matos Oliveira | 24 Janeiro a 23 Fevereiro de 2016 | TAGV – Teatro Académico de Gil Vicente, Coimbra, Portugal

 

Amor e o Humor Como Armas de Guerra

Crítica de Vera Castro Pinho sobre a exposição “Em Estado de Guerra”, que acontece até o dia 23 de fevereiro de 2016 no Teatro Académico de Gil Vicente (TAGV), em Coimbra, como programação vinculada ao Performance, agora!.

 

Antes de acessarmos as imagens propriamente expostas, ao atravessarmos a porta principal do Teatro Académico de Gil Vicente em Coimbra, podemos já escutar um ruído violento não tão identificável vindo do fundo do corredor do térreo, proveniente da sala de exposições. Se seguirmos o som até o fim do corredor, testemunharemos uma primeira imagem da “guerra”, que chegamos a imaginar por conta do título da exposição e, apesar da primeira composição sangrenta presente no conjunto de onze fotografias de um processo de tatuagem feita sobre a palma da mão de Paulo Aureliano da Mata, um dos artistas da Cia. Excessos, não atribuímos a brutalidade como essencial característica desse trabalho; logo ali, de frente para esse políptico fotográfico criado a partir da body art, percebemos uma mão cercada por uma moldura dourada, impregnando para sempre o tom escarlate na pele marcada pela tinta da tatuagem que alude ao referencial niemeyeriano presente no Memorial da América Latina em São Paulo. Neste trabalho chamado As Veias Ainda Abertas da América Latina (2014), tal desejo se amplia e, ao atravessar a pele com agulhas de tatuagem, o artista atravessa fronteiras literais e imaginárias para declarar o oposto do que denota uma guerra.

Finalmente, já dentro do imaginado front de batalha, vemos inúmeros televisores padronizados e uma grande projeção. Em uma das TVs, há a imagem, em plano fechado, das nádegas do performer Tales Frey a receber violentos tapas sequenciais durante ininterruptos nove minutos, cujos sons despontados da ação assemelham-se aos emitidos por armas de fogo; os tapas ressoam como tiros. A ironia presente no título dessa obra opõe-se ao ato brutal em si para um tipo de humor absolutamente corrosivo. Entrar no Samba (2013) procura explorar a repressão como um argumento insistente (quase obsessivo), impelindo a nossa compreensão com relação a toda sequência de trabalhos que estão ali juntamente expostos sob imagens em movimento aliadas aos respectivos acompanhamentos sonoros.

Nas demais obras dessa sala, percebemos o questionamento do enquadramento das normas sociais através da subversão, sendo a desordem a arma mais violenta contra os sistemas vigentes ali questionados. Em um dos demais televisores dispostos nesse ambiente, vemos um grupo de pessoas a banhar-se em frente a uma igreja católica sem exibir propriamente seus corpos nus. Em outros, contemplamos um casal heterossexual, em performance, a se beijar (sem cessar) no espaço público da cidade de Chicago (Estados Unidos) e também do Porto (Portugal) por contínuos trinta minutos com seus trajes trocados segundo uma lógica heteronormativa, sendo a confusão gerada um perspicaz questionamento sobre o incômodo que a situação em si causa, pois é sim a quebra da convenção (com os trajes desprovidos de regras e com o tempo esgarçado) o principal motivo para o incômodo dos transeuntes que observam a ação e não a orientação sexual em si de cada um dos performers.

Os beijos como motivações para ações de performance são muitos e acontecem de diferentes formas, com variadas durações e sobre dissemelhantes suportes (sobre o corpo, sobre a parede, sobre o vidro, sobre o espelho etc.) e os sons dos registos em vídeo das ações misturam-se e insurgem como um único tumulto, como única voz a protestar contra uma ordem falida e passível de questionamento.

Vale lembrar, evidentemente, que o estrondo que provém daquele espaço devolve o extremo afeto para uma mesma sociedade que estigmatiza as diferenças com suas manifestações de ódio. Através do amor e do humor, a exposição, que segue patente até o dia 23 de fevereiro de 2016, responde habilmente ao estado de guerra declarado contra tudo que possa colocar em xeque um comportamento tido como padrão. A estratégia encontrada pela Cia. Excessos para tocar esse regime normalizante que nos rodeia é através do mais completo escárnio, embora sempre da maneira mais afável possível ou através da manifestação da própria dor; nunca através da provocação da aflição física de quem é denunciado nas argumentações ali expostas.

Eu Gisberta (2015), uma body art de Paulo Aureliano da Mata exposta como fotografia e texto no segundo piso do TAGV, apresenta o violento episódio em que a transexual Gisberta Salce foi impetuosamente agredida por jovens entre 12 e 16 anos até a morte em 2006 na cidade do Porto. Nessa obra, Paulo mescla a sua própria história marcada pela intolerância vinda de instituições de ensino, onde a sua sexualidade era renegada por não ser considerada “exemplar”. Ao tatuar “Gisberta” na sua própria face, o artista, na verdade, crava tal nome na cara da dita sociedade “invicta” e nas tantas outras que percorrer com seu corpo ou com o dispositivo que o representa.

Cabe advertir que, neste mês de fevereiro, faz exatamente dez anos que Gisberta foi assassinada e, também, dez anos que a primeira ação da série Beijos foi realizada e, nesse aspecto, a exposição “Em Estado de Guerra” faz jus aos tributos tangenciados à história da Cia. Excessos e, também, jus às militâncias que envolvem o self e o contexto de ambos artistas que se uniram em prol da arte, mas sobretudo da arte política para darem voz aos que são quotidianamente calados por uma sistemática opressão que impõe modelos a serem seguidos à risca.