Tales Frey

As Pinturas Fílmicas de Carolee Schneemann (2018)

 

 

Programadores convidados da presente edição [do Queer Porto IV: Festival Internacional de Cinema Queer], Hilda de Paulo e Tales Frey, apresentam o programa “As Pinturas Fílmicas de Carolee Schneemann”, uma oportunidade única de ficar a conhecer a fundo uma das mais importantes performers norte-americanas e que constitui uma importante influência nas artes performativas queer até aos nossos dias.

 

João Ferreira

Diretor Artístico do Queer Porto 4

 

 

AS PINTURAS FÍLMICAS DE CAROLEE SCHNEEMANN

 

A mulher era a preocupação constante da imaginação masculina, mas

quando eu a quis examinar por completo em mim mesma e retratar as

partes verdadeiras, fui acusada de romper limites estéticos essenciais.

Carolee Schneemann

 

Antes propriamente de apresentar o conteúdo dos filmes que compõem esta sessão, vale pontuar que, nas obras de Schneemann concebidas na virada da década de 1950 para a de 60, podemos ver com certa nitidez como a artista parte das pinturas tradicionais sobre a tela para alcançar novas configurações por meio das esculturas cinéticas e construções pictóricas, assim como através das instalações, filmes e performances solo ou em grupo. A partir de seu gesto pictórico, todo o seu repertório resulta da ampliação dos princípios visuais para além do quadro. Desse modo, a artista denomina as suas obras como telas explodidas ou como pinturas performáticas, fílmicas e cinéticas e, ao considerar seu corpo como material tátil de sua pintura, Schneemann redefine a concepção do papel da artista como pessoa ativa e o da modelo como pessoa passiva e, de uma só vez, acaba por conferir a si mesma a sua vontade de ser o ímpeto da expressão criativa e o corpo moldado em sua própria criação.

É pertinente destacar ainda – antes de ponderarmos as obras da exibição – a performance Interior Scroll (1975), para a qual a artista datilografou um texto em um longo pedaço de papel e o introduziu na sua vagina por meio de um processo delicado de dobraduras para então, durante a performance, extrair lentamente o pergaminho criado, o qual a artista leu as suas próprias palavras ali impressas sob a finalidade de devolver “a ordem e a lógica à identidade primordial da vagina como caminho para o mundo, dando voz à totalidade e fecundidade daquele lugar que, com frequência, é de outro modo compreendido como um vazio” [1]. Em 1977, no Quarto Festival de Cinema de Telluride, Carolee Schneemann decide revisitar a ação Interior Scroll logo após se deparar com a imagem da capa do programa desse evento e, também, com um título equivocado dado a uma sessão organizada por ela – com Stan Brakhage – de filmes eróticos realizados por mulheres. Essa dupla frustração levou Schneemann a perceber o quanto a sua ação seria necessária naquele contexto.

É pensando como uma pintura expandida que Carolee Schneemann realiza filmes, e é com base na ação solo Interior Scroll que a artista concebe o filme Interior Scroll – The Cave (1995), com a colaboração da cineasta Maria Beatty. Nessa versão, no interior de uma caverna, a performance é realizada por seis mulheres, as quais retiram pergaminhos de suas vaginas e leem discursos que se dirigem aos principais cineastas do cinema estruturalista. As vozes ecoam e formam camadas sonoras sobrepostas em contraponto a close-ups do interior da boca da artista e, também, da sua vagina. Segundo Schneemann, “Interior Scroll  The Cave muda a política de gênero sexual atual por meio de uma visão estética compartilhada – que é aguçada pela dinâmica sexual da colaboração entre uma dominatrix lésbica e uma feminista heterossexual (‘Eu’ e ‘Outra’).” [2]

No ano de 1995, a artista realiza a leitura performática Vulva’s School no centro cultural Western Front em Vancouver no Canadá. A partir da captação fílmica dessa ação, vê-se Schneemann vestida sobriamente a usar um par de chifres falsos em frente a uma mesa e manipulando dois fantoches de mão, usando-os pontualmente durante o seu discurso. A artista utiliza dos códigos de conferência através do fluxo ininterrupto de sua história com intuito de recuperar o poder simbólico atribuído à palavra que tradicionalmente era imputado somente aos homens e, como um escritor de contos filosóficos do século XVIII, relaciona-se o nascimento e a educação de Vulva, sua personagem principal, a qual é vista como a encarnação da vagina. Schneemann profere: “Vulva vai à escola e descobre que não existe… Vulva vai à igreja e descobre que é obscena… Vulva estuda Freud e percebe que vai precisar transferir seu orgasmo clitoridiano para a vagina… Vulva lê Gramsci e Marx para examinar os privilégios de suas condições culturais… Vulva aprende analisar política perguntando: ‘Será que isto é bom para Vulva?’” [3] Desse modo, ao utilizar uma forma infantil, quase como uma canção de ninar, a artista posiciona-se a uma certa distância irônica de seu tema ao recontextualizar o lugar da vagina na história da arte e da cultura.

Finalmente, em 2012, a cineasta canadense Marielle Nitoslawska concebeu o documentário Breaking the Frame através da relação e da fusão entre arte e vida de Carolee Schneemann. Sendo bastante imersivo, Breaking the Frame é como uma chance de podermos passar um tempo com a pintora, cineasta, autora e artista performática Carolee Schneemann. Nesse filme, podemos vislumbrar trechos da obra Fuses (1964-1967) e fragmentos de outras criações igualmente icônicas de Schneemann. A obra é uma espécie de ode poética dedicada à artista, onde o passado e o presente de Schneemann se diluem, permitindo-nos vaguear pelos ambientes de suas vivências, bem como folhear conteúdos de seus diários. A metalinguagem é inescapável, porque trata-se de um documentário sobre alguém que documenta a sua própria natureza e nós testemunhamos as justaposições.

 

Hilda de Paulo e Tales Frey

Programadores Convidades

 

Notas

[1] STILES, Kristine (Ed.). Correspondence Course: An Epistolary History of Carolee Schneemann and Her Circle. 1. ed. Durham/London: Duke University Press, 2010, p. lvii.

[2] SCHNEEMANN, Carolee. “CS to Larry Rinder: 1 November 1994”. In: STILES, Kristine (Ed.). Correspondence Course: An Epistolary History of Carolee Schneemann and Her Circle. 1. ed. Durham/London: Duke University Press, 2010, p. 441.

[3] SCHNEEMANN, Carolee. “‘Vulva’s Morphia’ [A Morfina da Vulva], 1992-1997”. eRevista Performatus, Inhumas, ano 2, n. 12, out. 2014, p. 1-2.

 

PROGRAMA

11 de outubro de 2018, às 19h | Pequeno Auditório, Teatro Rivoli, Porto, Portugal 

 

 

Interior Scroll – The Cave, Carolee Schneemann

Estados Unidos, 1995, Exp., 8’, M/16

Numa vasta caverna subterrânea, Schneemann e outras mulheres nuas executam as ações ritualizadas de Interior Scroll – lendo o texto enquanto cada mulher lentamente extrai um pergaminho da sua vagina. O rolo incorpora a primazia de uma linha visual moldada em forma de conceito e ação. O texto extraído mescla a teoria crítica com o corpo como fonte de conhecimento. A câmara de Beatty move-se das ações nuas de grupo para close-ups do texto que se desfaz.

 

 

Vulva’s School, Carolee Schneemann

Estados Unidos, 1995, Exp., 7’, M/16

Uma performance filmada em que Schneemann personifica uma vulva irreprimível, que envolve dois fantoches de animais numa clamorosa desconstrução do preconceito sexual na semiótica francesa, no Marxismo, nas religiões patriarcais e nos tabus físicos.

 

 

Breaking the Frame, Marielle Nitoslawska

Canadá, 2012, Doc., 100’, M/16

Breaking the Frame é um extenso perfil da radical artista nova-iorquina Carolee Schneemann. Uma pioneira da performance art e do cinema de vanguarda, Schneemann tem vindo a quebrar as molduras do mundo da arte há já cinco décadas, desafiando os tabus erguidos contra o corpo feminino. Breaking the Frame é uma intervenção cinética e hiper-cinemática, uma medi(t)ação crítica sobre as correlações íntimas que animam a arte e a vida.

 

FOTOGRAFIA E VÍDEO

 

Hilda de Paulo/Paulo Aureliano da Mata abrindo a sessão As Pinturas Fílmicas de Carolee Schneemann integrada ao Queer Porto IV: Festival Internacional de Cinema Queer da cidade do Porto em Portugal. Registro de Mariana Bártolo/Queer Porto

 

Hilda de Paulo/Paulo Aureliano da Mata abrindo a sessão As Pinturas Fílmicas de Carolee Schneemann integrada ao Queer Porto IV: Festival Internacional de Cinema Queer da cidade do Porto em Portugal. Registro de @jaquelodi/Instagram