A exposição “Conducting Wire” – a acontecer entre 06/10/2023 a 14/01/2024 no Akureyri Art Museum – é pautada no cruzamento entre performance, vídeo, fotografia, pintura, escultura, objetos cinéticos, objetos luminosos e objetos relacionais e apresenta um recorte antológico das obras dos artistas Hilda de Paulo e Tales Frey, em atuação há mais de quinze anos em Portugal e diversos contextos.
O projeto articula ambas as produções identificando seus pontos de encontro e convergência, fruto da longa convivência colaborativa entre o casal de artistas. Hilda participa ativamente das performances de Tales que, por sua vez, está presente em muitos trabalhos de Hilda. O que se incorpora de um e de outro? Quais os limites entre vida e obra? De que são feitos os encontros? Nesse entrelaçamento, suas obras se anunciam como políticas do desejo, no intuito de construir outros modos de existência.
Tales Frey é conhecido por trabalhar com procedimentos que profanam a unidade do corpo através de espelhamentos, duplicações e multiplicações, transformando-o num dispositivo estranho e menos reconhecível, submetido a uma espécie de metamorfose temporária e fantasiosamente menos pautado por estigmas, padrões sociais e expectativas preestabelecidas. Nesta exposição, o artista apresentará suas criações que envolvem os seus “indumentos”, que nublam os limites onde começa um corpo e acaba o outro, dedicados a explorar a materialidade social do espaço circundante e refletir um senso ético que busca exercitar formas de subjetivação política. É significativo notar, no entanto, que os corpos humanos que são matéria-prima e ferramenta do artista ostentam códigos visuais que vão na contramão da reivindicação de um eu específico e único. Suas vestimentas ambicionam neutralidade, além de haver pouco ou nenhum acessório, como se o artista estivesse interessado numa espécie de anonimidade. Tales não se refere a este ou aquele sujeito, mas ao Eu e ao Outro como categorias ontológicas, apesar de presentificadas por diferentes corpos – inclusive o seu próprio – e em diálogo com forças do campo social (é constante, por exemplo, a presença estranhada de signos convencionais como o vestido de noiva, o salto alto, o tule e outras vestimentas consideradas “coisas de mulher”, ou o terno e o sapato social, considerados “coisas de homem”). Não é raro, ainda, que suas performances deflagrem não o triunfo da ação ou a virtuose do movimento, mas justo o conflito e a colisão, a hesitação do gesto e algum resto de fracasso e exaustão, levando a crer que há algo nessa “coletividade” que não necessariamente coincide com a fantasia democrática.
Já no caso de Hilda de Paulo, tais questões aproximam-se mais das chamadas “escritas de si”, cujo cerne é a exploração da autoficcionalização, da fabulação das identidades e da aproximação entre o íntimo e o público. Em suas obras, com mais ou menos ênfase, vemos a presença da primeira pessoa, em que se identificam aspectos de discurso autobiográfico. Não se trata, porém, de performar a autoficção para estabelecer uma identidade fixa e unívoca, ao contrário, o gesto se aproxima mais do reconhecimento de uma outra – a estrangeira, a estranha – no seio de si mesma. Enquanto travesti, interessa à artista tensionar a suposta naturalidade do contrato sexo/gênero/desejo e seus marcadores ideológicos, reconhecendo o corpo como campo de batalha e laboratório de experimentação; dispositivo em disputa sobre o qual o poder político se exerce e se impõe. Sua série de “Eus”, sempre dedicada a figuras de importância afetiva para a artista, é constituída de objetos-pintura de espessura matérica, caráter híbrido e motivação algo literária, por vezes aproximando fragmentos do corpo humano a elementos vegetais e animais. Tais exercícios de expressão subjetiva não se limitam, no entanto, a uma mera exteriorização da intimidade. Para Hilda, interessa situar as fábulas do “eu” em pressupostos intelectuais, ao reconhecer que às trans*epistemologias não interessa a fantasia separatista de uma História da Arte dedicada a delimitar fronteiras entre o que é biográfico (aspecto em geral desvalorizado, considerado demasiado solipsista ou mera “coisa de bastidores”) e o que é público (aspecto sobrevalorizado, mas cujo ideal sempre esteve sujeito a exclusões baseadas em gênero, raça/etnia e classe). Para esta exposição, Hilda de Paulo traz em uma das suas peças centrais, uma investigação da história e cultura trans de Portugal assim como a afetividade das corporeidades trans desde a ditadura portuguesa até os tempos atuais.
Assim, “Conducting Wire” evidencia que toda identidade é construída em contraste com uma alteridade, um outro de quem nos diferenciamos. Só somos algo em relação a um referente, o que significa que somos muitos, na medida em que mudam os nossos contextos.
Pollyana Quintella
curadora
OBRAS
1) Hilda de Paulo, A Amante Ideal (Depois de Emília Nadal), 2021. Objeto;
2) Tales Frey, Dupla Penetração, 2020. Caixas de luz;
3) Hilda de Paulo, Hilda de Paulo (Depois de VALIE EXPORT), 2021. Fotografia;
4) Hilda de Paulo, Hilda de Paulo (Sapatos), 2021. Objeto-pintura;
5) Tales Frey, Sissyparity, 2020. Políptico fotográfico;
6) Tales Frey, Il Faut Souffrir pour Être Belle, 2018. Fotografia;
7) Tales Frey, Fio Condutor, 2020. Vídeo.
Programa Paralelo da Exposição Leiðnivír | Conducting Wire
05 de outubro de 2023, às 18h | Sala 1
Performance I Traje para II, com Tales Frey e Hilda de Paulo
Ação integrada ao A! Performance Festival
07 de outubro de 2023, às 19h | Sala 1
Performance Il Faut Souffrir pour Être Belle, com Tales Frey e Sóley Eva Magnúsdóttir
Ação integrada ao A! Performance Festival
FICHA TÉCNICA
Hilda de Paulo e Tales Frey: Leiðnivír | Conducting Wire | Akureyri Art Museum, Akureyri, Islândia | Curadoria e Texto: Pollyana Quintella | Designer e Assessor de Imprensa: Hlynur F. Þormóðsson | Montagem: Freyja Reynisdóttir | Serviço educativo: Heiða Björk Vilhjálmsdóttir e Guðrún Pálína Guðmundsdóttir | Documentação fotográfica: Daníel Starrason | Direção do Museu: Hlynur Hallsson | 06 de outubro de 2023 a 14 de janeiro de 2024 | Projeto contemplado pelo Shuttle – Apoio à Internacionalização Artística da Câmara do Porto
Exposição Leiðnivír | Conducting Wire (2023), de Hilda de Paulo e Tales Frey. Akureyri Art Museum, Akureyri, Islândia
Exposição Leiðnivír | Conducting Wire (2023), de Hilda de Paulo e Tales Frey. Akureyri Art Museum, Akureyri, Islândia
Exposição Leiðnivír | Conducting Wire (2023), de Hilda de Paulo e Tales Frey. Akureyri Art Museum, Akureyri, Islândia