Este texto de Dinah Cesare foi publicado em: Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais (Vol. II, n. 13, março de 2009, ISSN 1983-0300).
A performance passou a ser considerada uma expressão artística independentemente de definições elaboradas na década de 1970, época em que o conceito se impunha mais do que o produto propriamente dito. Quando pensamos em performance, pode surgir a ideia de que ela tem como um de seus objetivos ou consequências provocar o choque. Os artistas elaboravam manifestações em espaços urbanos, avaliando de certa forma o fazer artístico em meio ao cotidiano das pessoas. O choque podia ser compreendido tanto pelo lado de quem fazia quanto pelo lado da recepção, pois não era possível prever as reações. Uma das ideias de performance de fato está associada à sua característica de acontecer uma vez e nem sempre deixar registro. O caso feliz da Cia. Excessos de Portugal é que ela realiza uma gravação do seu trabalho e veicula na internet, como no caso da performance O Outro Beijo no Asfalto. O que acontece é que mais pessoas podem se envolver e os sentidos se alastram. Este texto, portanto, é um exercício crítico mediado pelas imagens capturadas por outro, já nasce de uma operação de olhar conjunto e se constrói mais obviamente por uma alteridade.
A performance faz referência à peça do dramaturgo Nelson Rodrigues, O Beijo no Asfalto, escrita em 1961. Na peça de Nelson, um homem na rua perde o equilíbrio, cai e é atropelado por um ônibus. Outro homem que passa vai ao socorro do acidentado que agoniza e lhe pede um beijo. O homem que auxilia o acidentado atende o que seria o último pedido deste e o beija. A partir daí, o homem que dá o beijo cai numa rede de intrigas e é enredado em questões homossexuais e criminais. Seu fim é trágico.
Em O Outro Beijo no Asfalto o espaço é uma rua da cidade do Porto em um horário comercial. A exterioridade dos papéis trocados discute definição de gêneros. A corporalidade dos performers parece conversar de certo modo com nossos princípios de fisionomia, pois a performer é baixa e robusta, compacta, como se pode pensar de uma fisicalidade masculina. O performer é alto e magro, como o ideal de beleza feminina. As roupas, tanto o terno quanto o figurino feminino, são de cortes e motivos antigos, o que parece sinalizar que a questão de gêneros não é uma ocorrência contemporânea, ou seja, discutem a temporalidade, nosso modo de estar no tempo. Se a definição de performance mostra que, entre suas características, ela desempenha o papel de possibilitar ao espectador ter acesso ao mundo da arte em uma interrupção impensada em seu cotidiano, no caso de O Outro Beijo no Asfalto nossa concepção cultural toma, ao menos, um golpe bem-humorado. Mas o curioso é que nem nos damos conta de que realmente, ao contrário da peça de Nelson, o beijo é entre um homem e uma mulher. Talvez isso queira dizer que continuamos os mesmos sendo diferentes: lucidez sutil do trabalho que quase passa despercebida. Porém, a placa de contramão que surge na esquina quando o casal desaparece sinaliza a vigência de uma não aceitação e a contravenção do ato.
A gravação da performance realizada em preto e branco me fez lembrar de uma foto de Robert Doisneau que mostra um casal se beijando em uma rua de Paris em meio aos transeuntes. A referida fotografia é de 1950 e, durante muito tempo, se pensou que fosse um instantâneo casual, porém, ao sabermos que se trata de uma pose elaborada pelo fotógrafo, ela parece evocar a felicidade e a promessa fictícia dos anos pós Segunda Grande Guerra. Os elementos ficcionais da performance da Cia. Excessos, a gravação que deixa à mostra pessoas fotografando e filmando com seus celulares, nos sugere que a discussão da sexualidade possui diversos planos entre o que conquistamos em termos de direito e a fogueira na qual nos deixamos arder.