Este texto de Tales Frey foi publicado em: eRevista Performatus (Inhumas, ano 7, n. 20, abril de 2019. ISSN: 2316-8102).
Tales Frey, Estar a Par. Performance realizada na cidade do Porto, Portugal. Janeiro de 2018. Fotografia de José Caldeira
Contradizendo o visual abarrotado de imagens e o ritmo frenético de sucessão de informações da atual sociedade de consumo e das suas tecnologias, desde 2006 – quando concebi o trabalho O Beijo em parceria com a artista Cristine Ágape – eu tenho realizado uma série de ações pautadas no uso mínimo de recursos para que os elementos principais ganhem a máxima potencialidade simbólica em cada expressão artística originada. Ainda em contraste com o princípio do funcionamento da atualidade no que diz respeito ao excesso de informações, busco alargar o tempo na ativação de ações simples, propondo por vezes gestos insistentes, repetitivos e com objetivos claros e, algumas vezes, apresento o corpo quase inerte em um simples “modo de espera” (termo que tomo emprestado de André Lepecki fazendo menção a Ana Kisselgoff) [1].
No livro Tempo e Memória, de Katia Canton, há um trecho de uma fala do artista Bill Viola retirado de uma entrevista concedida a Marcello Dantas em seu documentário Processing the Signal (Nova York, 1989) onde o artista diz que o mundo nos empurra a fazermos “as coisas cada vez mais curtas”, sugerindo “mais informações em menos tempo”. A partir dessa noção, Bill Viola se propõe a fazer justamente o oposto: “mostrar cada vez menos informação em mais tempo” [2]. Eu me identifico fortemente com essa noção de dilatação do tempo como uma tática para induzir a audiência a uma reflexão aguda estimulada por poucos signos propostos. À medida que emergem as questões e as possíveis conclusões por parte da audiência, com o tempo de ação arrastado, uma insistente imagem passa a impulsionar novas formas de interpretação sobre a mesma e, assim, os significados variam, confirmam-se e/ou se contradizem.
Embora eu não tenha a intenção de encaixar o meu trabalho de performance ao vivo em uma categoria específica, eu o compreendo em parte como uma arte plástica em movimento e até mesmo como uma espécie de escultura cinética, uma vez que utilizo o corpo humano como suporte para criar relevos, definir formas e espaços, proporcionando tridimensionalidade a cada trabalho produzido, negando muitas vezes as relações com a frontalidade clássica das artes cênicas e com a matéria inerte das artes plásticas. De maneira oposta à ideia de movimento frenético, eu poderia nomear grande parte dos meus trabalhos como uma coreografia não necessariamente submissa ao imperativo da cinética.
Pensando a minha prática artística de forma mais abrangente, enfatizo que a performance é o meio de expressão mais recorrente nas minhas proposições, mas tenho grande empenho em estabelecer a noção de performatividade em diversos meios, por exemplo, pelo recurso do vídeo, da fotografia, do objeto, da instalação, entre outros. Embora eu me utilize de nomenclaturas que cercam uma determinada expressão artística, tenho consciência de uma condição pós-midiática marcada pelo atravessamento de linguagens nas práticas atuais e, nesse sentido, suponho que cada expressão proposta por mim esteja sempre integrada com outras várias, sem muros, sem restrições categóricas e ortodoxas.
Especulação intuitiva: Estar a Par
Tales Frey, Estar a Par – Objeto, 2017. Objeto, 63 x 24 x 11,5 cm
Em arte, há que se ter uma consideração inequívoca à intuição, pois a racionalização precisa é impossível quando se trata de algo que não tem parâmetros lógicos. Arte não tem precisão matemática, não é mensurável e, assim, muitas vezes é gerada e assimilada por impulsos intuitivos. Verbalizar – como tento fazer aqui – já é algo complexo, logo tento enfatizar que é impossível relatar integralmente os processos relacionados à criação artística naquilo que diz respeito à ideia.
Normalmente, a minha metodologia de criação acontece por meio do que costumo chamar de “reflexão visual”, onde uma compreensão súbita de muitas coisas sobrevém de repente em forma de imagem. Nem sempre é assim, mas quando ocorre dessa forma, para prosseguir (ou não) com a tal ideia que me vem como imagem, reflito sobre ela como se estivesse dissecando uma obra de arte qualquer, aplicando conceitos da escrita crítica de arte por meio de quatro diferentes etapas: contextualização, descrição, interpretação e avaliação. Depois disso, se eu perceber que a imagem faz algum sentido para ser compartilhada como um trabalho de arte, eu a materializo.
Enquanto executava pela primeira vez a performance Be (on) You durante a III Bienal Internacional de Performance HORASperdidas, na cidade de Monterrey, no México, sob intensa chuva num dia extremamente quente, repentinamente criei a ação Estar a Par. A ação Be (on) You – que ativo exclusivamente com o meu marido, o artista visual e pesquisador Paulo Aureliano da Mata – é um desdobramento da performance F2M2M2F, sendo que diferentemente da segunda, não apresento corpos com trajes trocados com relação aos códigos sociais cisheteronormativos; proponho simplesmente o meu corpo vestido com trajes do meu dia a dia e disponho peças similares no corpo de Da Mata. Igualmente à ação F2M2M2F de minha autoria, sempre em movimento pelo espaço estipulado para a performance acontecer, eu e uma performer convidada beijamos as nossas próprias imagens refletidas em um único espelho de dupla face por uma hora seguida, emitindo sons e mantendo a altura de nossas bocas alinhadas, mas intermediadas pelos espelhos conectados.
Em F2M2M2F, ação que realizo sempre com alguma performer convidada (não havendo uma parceira fixa), os nossos passos são quase sempre desajeitados e poucas vezes conquistamos uma sincronia bem integrada, inclusive porque normalmente sou bem mais alto que a parceira e ganho ainda mais altura com o uso de um par de salto alto. Com Aureliano da Mata, com quem sou casado há doze anos, ao ativar a ação Be (on) You, os nossos passos já começaram harmonizados e imediatamente percebi que nossos pés eram mantidos quase aglutinados. As pontas dos meus roçavam todo o tempo nas pontas dos dele. Foi assim que pensei em produzir um par de sapatos que pudesse ser uma obra de arte autônoma, ou seja, apresentada como um objeto, mas também como uma peça capaz de acionar uma ação de performance ao vivo. Tal ideia me ocorreu enquanto executava a performance Be (On) You no México.
Tales Frey, Be (On) You. Performance realizada na cidade de Monterrey, México. Agosto de 2016. Fotografia de Roberto de León
Neste caso, eu nem apliquei as quatro etapas de uma crítica de arte, pois o insight foi claro o suficiente para que eu compreendesse a forma como a imagem pensada poderia ser uma analogia de um relacionamento duradouro, considerando a conquista, o prazer, o desgaste, a reconquista e as diversas fases dessa relação, mas sobretudo o convívio entre as diferenças, o que pode ser aplicado não somente a um casal, mas a qualquer tipo de relacionamento afetivo ou não. Pensei num objeto que correspondesse tanto à numeração dos meus pés como à numeração dos pés do Paulo Aureliano da Mata e que o design do objeto – um par de sapatos conectados pelos bicos – pudesse forçar que os nossos corpos estivessem posicionados um de frente para o outro e que nossos passos se assemelhassem aos de uma dança a par, onde o ato de caminhar para trás ou para frente estivesse sempre dependente do referencial, e a decisão de ir para trás ou para frente teria que acontecer de forma consensual para que o risco da queda fosse evitado.
Inicialmente, pensei que o tempo da ação pudesse ser o de três ininterruptas horas e, então, em consonância com esse conceito, eu e Paulo executamos a ação pela primeira vez no AMOQA – Athens Museum of Queer Arts, em maio de 2017, na cidade de Atenas, Grécia, e o resultado alcançado foi quase satisfatório, pois o tempo era demasiado dilatado para uma audiência não tão volumosa. Pensei então que a duração não precisava ser tão extensa e, entre junho e julho de 2017, no SESC Santana (na cidade de São Paulo) e no SESC Registro (no interior do estado de São Paulo), nós fizemos a ação por apenas uma única hora em cada unidade e julguei que esse tempo ainda não era o ideal, pois não exploramos o esgotamento físico e mental que nos obrigaria a ter que reconquistar o ânimo do convívio à medida que o cansaço surgisse. Assim, em apresentação no Teatro Municipal Rivoli, no Porto, em Portugal, executamos a ação por quatro horas, tendo um intervalo de uma hora depois das duas primeiras de ação. Essa organização de um período alargado de tempo repartido em dois momentos realmente foi a ideal para que os signos da ação pudessem ser acionados naturalmente em nossas movimentações.
Gerei Estar a Par como performance ao vivo, mas também como um objeto autônomo e, então, expus o trabalho na XIX Bienal Internacional de Vila Nova de Cerveira, onde pude confirmar a condição de independência do artefato ao receber Prêmio Aquisição Câmara Municipal de Cerveira, o qual passou a ser uma peça do acervo da instituição. Depois, distendendo essa mesma obra, criei mais dois dispositivos (o do vídeo e o da fotografia), que foram apresentados juntamente com o objeto na Corner Window Gallery, em Auckland, Nova Zelândia, sob a curadoria de Rob Garret e, depois, na exposição Enredos para um Corpo, com a curadoria de Raphael Fonseca, no Centro Cultural da Justiça Federal na cidade do Rio de Janeiro, Brasil. O vídeo, captado por Renato Vallone, foi exposto em uma série de eventos, dentre eles: Festival Internacional de Danza de Córdoba, na Argentina; Body Landscapes Performance Art Festival, em Copenhagen, Dinamarca; Conquista Ruas: Festival de Artes Performativas, em Valência, Espanha; Acciones al Margen – Festival Internacional de Performance, em Bucaramanga, Colômbia; 2nd Perform – Or Not, em Tallinn, Estônia; e no Convergência 2017, no SESC Palmas, em Tocantins.
Ainda na minha exposição individual, Cinco Táticas de Ativação, no CAAA – Centro para os Assuntos da Arte e Arquitectura, entre janeiro e março de 2019, pensei numa nova resolução para o trabalho. Outros corpos ocupam o adereço que tem medidas fixas e, assim, esses sujeitos poderão encontrar em Estar a Par um encaixe perfeito ou não, criando analogias variadas sobre as suas relações com os outros e até mesmo com as suas próprias existências, afinal estar perfeitamente encaixado não significa estar em plena harmonia com o mundo.
Pelo tipo de movimento repetitivo – embora tenha uma constante alteração, ainda que essa seja sutil –, este trabalho acaba por se relacionar com todos os da série “Beijos” (O Beijo, O Beijo II, O Beijo III, Reciprocidade Desalmada, Beija-se, Aliança, Vidrar, Be (on) You, F2M2M2F e F2M2M2F X 6).
Saindo da Gaveta: Finitas Contagens para Infinitas Variações
Tales Frey, Finitas Contagens para Infinitas Variações, 2017. Fotografias, 6 x 9 cm cada
Desde 2015 penso em realizar a ação Finitas Contagens para Infinitas Variações e, a princípio, esse trabalho seria executado por mim e por Da Mata e, juntos, permaneceríamos cinco horas por dia a executar a performance durante um mês seguido em uma galeria branca de arte.
Havia pensado em utilizar o nosso corpo adornado por um indumento da dança clássica (um tutu de bailarina preto) e da moda (calçaríamos sóbrios scarpins de mesma cor). Cada um de nós teria um microfone nas mãos, o qual estaria conectado a um pedal looper, que, por sua vez, estaria ligado a um amplificador de som. A ideia era que contássemos (de um até o número que conseguíssemos) todas as poses que fôssemos executando no espaço, não havendo um tempo específico para a duração de cada uma delas, mas a transição entre uma e outra não poderia durar mais do que dois ou três segundos. Nossas vozes se misturariam e os números ficariam cada vez mais sobrepostos, cada vez mais confusos e, assim, a nossa concentração deveria ser seriamente rigorosa para que não perdêssemos a contagem e nem repetíssemos poses já praticadas.
Obviamente, as poses, as velocidades e a intensidade de um contaminaria a do outro, bem como a contagem de um poderia acabar por interferir na contagem do outro. No final de cada dia, deveríamos memorizar o número que suspendemos e, aí, continuaríamos a contagem e a execução de novas poses no outro dia, e assim sucessivamente até cumprirmos as cento e cinquenta horas que o trabalho pressupunha. Pensava no trabalho como algo que, por meio da performance, não fosse dança, mas que flertasse com ela de algum modo e, também, que não fosse música, mas que o ruído pudesse ser também pensado como tal e, ainda, que não fosse escultura, mas que refletisse sobre dispositivos não convencionais para a proposição de esculturas. O tempo de duração da performance corresponderia ao de uma exposição de arte. Nossos corpos seriam encarados como as peças expositivas no espaço. Seria um trabalho híbrido por excelência, mas não consegui convencer nenhuma instituição na cidade do Porto a acolher a proposta. Por fim, não realizei o trabalho desta maneira e guardei as anotações para outros futuros projetos.
Tales Frey, Finitas Contagens para Infinitas Variações. Performance realizada na cidade de Bauru-SP, Brasil. Abril de 2018. Fotografias de Paola Frey
Em fevereiro de 2017, devido a um convite que recebi do Projeto T3 para apresentar alguma performance no Café-Concerto da Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo, no Porto, retirei da “gaveta” a ideia de fazer poses e contagens com trajes pretos sobre fundo branco e pensei em utilizar três plintos brancos para, assim, posar sobre eles e executar a mesma ideia sozinho, aludindo à ação Pose Work for Plinths (1971), de Bruce McLean. No Projeto T3, pediram-me que eu executasse apenas por quinze minutos a ação, mas a minha ideia era alargar o tempo e, então, utilizei essa primeira amostra apenas como um experimento aberto ao público.
Semanas depois, mostrei o trabalho com cento e vinte minutos de duração no Espaço de Intervenção Cultural Maus Hábitos, em uma galeria branca, exatamente como eu desejava e, ali, percebi que a metade desse tempo já seria o suficiente para eu atingir uma satisfatória extenuação de construções corpóreas.
Percebi na ação um aparente “modo loop” (embora não existam repetições completamente idênticas de movimentos e imobilidades em momento algum) e, para confirmar essa noção, logo após a apresentação, o artista Silvestre Pestana fez algumas observações sobre a performance e, primeiramente, disse não identificar a ação como uma reperformance com base na de McLean, mas sim como uma “ultrapassagem à tendência conservadora do remake”. O artista português levantou ainda uma tendência geral na qual a minha ação poderia se enquadrar, atribuindo um nome genérico de “performatividade gif”. [3] Então, dias após essa conversa, eu me senti motivado a criar uma série intitulada “Performance Gif” a fim de inserir ações concebidas (ou expandidas de ações ao vivo ou executadas para o vídeo) para serem apresentadas por meio do gif (Graphics Interchange Format ou formato para intercâmbio de gráficos), possibilitando uma nova mediação da performance e uma disseminação facilitada pela internet, alcançando um número amplo de pessoas que pudessem acessar o conteúdo do trabalho de maneira extremamente resumida. Tal conceito acabaria por se opor à afirmação inicial descrita neste artigo no que diz respeito à ruptura de uma lógica acelerada das sociedades de consumo se o gif, por essência, não fosse uma informação cíclica sintetizada que fica em modo de repetição infinita.
Com relação à ação ao vivo, alguns meses depois da apresentação no espaço Maus Hábitos, reapresentei o trabalho com sessenta minutos exatos de duração e confirmei que esta sim é a duração ideal. Com a resolução de uma hora, a ação decorreu em diferentes contextos onde pude verificar a resistência do público em partilhar tal recorte de tempo comigo, fazendo existir uma tensão entre a audiência e a minha presença. Tal noção foi constatada nos seguintes contextos: Atmo #3, em Berlim; SESC Registro; Pinacoteca João Nasser, em Catanduva, São Paulo; SESC Bauru; SESC Jundiaí; SESC Vila Mariana; e no SESC Santo Amaro durante a Mostra de Performance In Loqus.
Códigos Identificáveis: Ponto Comum
Tales Frey, Ponto Comum, 2017. Fotografia de Fernanda de Moraes
Semanas depois de apresentar a ação Finitas Contagens para Infinitas Variações no Maus Hábitos, em fevereiro de 2017, recebi um convite para ativar a obra Untitled (1995), do artista austríaco Erwin Wurm, juntamente com Paulo Aureliano da Mata na exposição Do it, que tem a curadoria do renomado curador Hans-Ulrich Obrist, cujo evento iria acontecer na cidade do Porto no Pavilhão de Exposições da FBAUP – Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. A tal obra do Erwin Wurm consiste em seguir uma instrução para vestir suéteres de formas não convencionais e permanecer por vinte segundos em cada pose, ou seja, encaixar as pernas nas mangas e o resto do corpo na área destinada ao torso ou as pernas na abertura do pescoço e a cabeça em uma das mangas, enfim, as possibilidades são muitas. Imediatamente, relacionei esse trabalho ao que havia apresentado semanas antes e aceitei o convite por perceber o imenso sentido que havia nele. Como havia uma abertura com relação à forma como as obras poderiam ser ativadas, Da Mata e eu executamos o trabalho até a nossa exaustão, sem duração prevista, sem compromisso com o tempo, simplesmente esgotando as possibilidades de forma e a nossa própria resistência.
Erwin Wurm, Untitled, 1995
Conceitualmente, a Do it é uma exposição itinerante e surgiu vinte e quatro anos antes da sua materialização na FBAUP, em 1993, em Paris, a partir de uma conversa entre Obrist e os artistas Christian Boltanski e Bertrand Lavier. Refletindo sobre como os formatos de exposição de arte poderiam se tornar mais abertos e mais flexíveis, a Do it nasceu como uma resposta às apreensões relacionadas aos formatos expositivos da época [4], confirmando que uma obra de arte pode suscitar diferentes compreensões de acordo com o contexto e época em que é apresentada. Esse silogismo é algo que sempre pensei para a exposição das minhas criações e por isso vejo completo sentido em apresentar meus trabalhos em diferentes lugares e tempos.
Dois meses antes da apresentação de Finitas Contagens para Infinitas Variações e do convite para a ativação da obra do Erwin Wurm, eu estava pela primeira vez fazendo uma viagem com a minha irmã do meio, Paola Frey. Fomos juntos para Berlim em pleno inverno e, então, fazíamos uso de roupas térmicas idênticas por baixo de nossos trajes diários. Como comemoramos o nosso aniversário no mesmo dia por eu ter nascido exatamente no dia da comemoração de um ano de nascimento dela, nós sempre brincávamos de Supergêmeos na nossa infância, que são heróis de um desenho animado da série Superamigos. Juntávamos as nossas mãos como os irmãos alienígenas e falávamos “Supergêmeos ativar”. No desenho, os poderes dos personagens só eram ativados ou desativados quando eles juntavam as mãos, ou seja, por meio do contato do corpo de um com o outro.
Se não bastasse ter nascido no aniversário da Paola, nós nascemos no dia 20 de junho, portanto somos gêmeos no signo astrológico do zodíaco e, por mais céticos que fôssemos desde muito cedo, os sentidos dessas coincidências nos fizeram crescer com essa brincadeira de que éramos mesmo irmãos gêmeos.
Tenho uma série de trabalhos chamada Memento Mori em que desenvolvo uma ação nova a cada ano para ser apresentada pela primeira vez no dia do meu aniversário e repetida depois em diferentes contextos e momentos, transformando o rito de passagem em ritual artístico/estético. Creio que o interesse pelo rito de passagem dos meus anos tenha uma relação com isso tudo que relatei aqui. Logo, no ano de 2017, acabei por desenvolver a ação Ponto Comum a partir de todos os estímulos visuais e sensoriais que havia assimilado naquele momento: a lycra escura das nossas roupas térmicas, o fato de sermos irmãos e termos a mesma data de nascimento, a brincadeira dos Supergêmeos e da “ativação” ser justamente o contato dos nossos corpos e, claro, a participação na ativação da obra do Erwin Wurm. E, para além de todos esses dados, eu estaria no Brasil no período do meu aniversário, logo optei por apresentar a ação na Pinacoteca João Nasser, uma instituição situada na rua da casa onde crescemos juntos na cidade de Catanduva, no estado de São Paulo, sendo um edifício que fez parte do nosso imaginário quando o prédio estava inteiramente abandonado.
Ponto Comum consiste em um indumento de lycra escura criado para ser vestido por mim e pela minha irmã, conectando nossos corpos como gêmeos siameses. O indumento faz com que nossos corpos se fundam e que não apresentemos os nossos braços, pois, a partir das nossas cinturas, concebi que o material se prolongasse como um tubo-conector, deixando apenas as pernas livres apesar de estarem também revestidas com o mesmo elemento. A imagem do nosso corpo em síntese sugere dois corpos em processo de nascimento a partir de uma mesma célula em bipartição/cissiparidade ou o contrário: a morte de dois corpos autônomos para que um único seja gerado, o que equivaleria também a um rebobinar do tempo, como se estivéssemos caminhando de volta ao útero materno. Essa premissa da relação entre morte e vida está muito presente em todos os trabalhos dessa série de aniversários e, em todos os trabalhos criados para esse conjunto, há essa relação contígua e oposta de uma só vez.
Tales Frey, Ponto Comum – Indumento Relacional, 2018. Objeto interativo, Caixa com objeto interativo, 9 x 57 x 18 cm; conjunto das fotografias, 44 x 59 cm
O trabalho ao vivo, coreografado em parceria com a Paola Frey, foi apresentado em diferentes contextos ao vivo e, depois, desdobrado como um objeto-interativo combinado com nove fotografias da ação e uma instrução de uso do objeto, permitindo que visitantes do espaço expositivo experimentem o traje e lhe atribuam cinetismo. Visualmente, esse desdobramento faz menção tanto ao trabalho de Erwin Wurm quanto às concretizações de Lygia Clark, Lygia Pape e Hélio Oiticica.
Da separação, o elo: Persistência Ilusória – Um Inventário Monocromático
Tales Frey, Persistência Ilusória – Um Inventário Monocromático. Performance realizada na cidade do Porto, Portugal. Junho de 2018. Fotografia de Hilda de Paulo
Em dezembro de 2017, fiz uma residência artística no Mira Artes Performativas na cidade do Porto, onde me propus a criar uma ação que pudesse servir para uma nova performance da série Memento Mori. Como a performance a ser criada só poderia ser apresentada no dia 20 de junho de 2018, como um rito de passagem dos meus anos, optei por utilizar o tempo da residência com extrema tranquilidade e, assim, o que expus ao público no final da residência artística foi apenas um processo aberto. Ali escolhi uma pequena sala – um escritório –, que não é um espaço para apresentações artísticas. Trata-se de um ambiente situado num plano abaixo do nível da sala principal e isso me conduziu a um imaginário fúnebre, como se aquele ambiente pudesse representar uma cripta e, assim, pudesse aludir ao rito de passagem que me aproxima do meu fim. Esvaziei o espaço e o preenchi com os meus pertences pessoais, expondo um inventário monocromático cuja paleta toda preta contrastava com o ambiente claro do lugar.
Dentre os materiais que compunham meu inventário estavam: o objeto Estar a Par, uma câmera super 8, cinco urnas de madeira de diferentes tamanhos, carteira para documentos, cadernos de anotação, caixa para lápis e canetas, porta-moedas, recipientes de barro, um par de luvas de couro, bolas tailandesas e pinças de mamilos, guarda-chuva, cálice de vidro, traje de lantejoulas, botas e sapatos sociais, martelo, pregos e linhas de costura.
Finalmente, em junho de 2018, vesti um zentai preto e me posicionei junto dos objetos, como se eu pudesse me igualar a eles, como se eu pudesse ser uma peça escultórica, uma figura “coisificada”, “inumana”, criando uma metafórica suspensão do tempo que conduz a minha massa corpórea à sua fatal decomposição.
Hans-Thies Lehmann diz que “um modo particular da presença corporal pós-dramática é a transformação do performer num objeto-humano, uma escultura viva” [5] e, considerando que o trabalho é indubitavelmente uma arte ao vivo, posso considerar tal afirmativa como adequada para o discernimento acerca da linguagem do trabalho que, apesar de estar pautado também nas artes visuais, mais especificamente na instalação e escultura, o resultado é performativo, logo, cênico e pós-dramático, uma vez que não há texto convencional, apenas uma narrativa semiótica por meio de imagens.
Se na ação Ponto Comum eu havia proposto criar uma imagem de dois corpos em comunhão ou em separação (ao mesmo tempo) e estabelecer pontos de contato entre a vida e a morte, na ação Persistência Ilusória – Um Inventário Monocromático, eu apresento o meu corpo já completamente emancipado do outro, ladeado de coisas que fornecem dados sobre a sua subjetividade, embora o corpo esteja oculto. Nesta ação, eu me desprendo do tempo pendente dos meus trinta e cinco anos, o qual foi marcado por dois corpos em “modo de espera”, entre a junção e a separação por meio da performance Ponto Comum e, assim, do estado anterior de uma vida a par, sem definir ao certo se estaríamos estabelecendo uma fusão ou uma cissiparidade, a vida unária em Persistência Ilusória – Um Inventário Monocromático, que marcou meus trinta e seis anos, sugere uma confirmação da última hipótese que poderia significar uma fissão binária.
A minha permanência neste tal “modo de espera” é algo que explorei antes nas ações Proxim(a)idade (2013), Reverso (2014), Reverso – Variante I (2015), Por Favor, Não Tocar (2015) e Passagem (2016), bem como nos processos das videoperformances Entrar no Samba (2013), Atendo ao Molde (2013), Ilha #1 (2016) e da fotoperformance Ilha #3 (2016).
Durante duas horas, em Persistência Ilusória – Um Inventário Monocromático, eu permanecia de três a cinco minutos em média em cada pose que erigia, trocando cada uma delas à medida que me sentia fisicamente desconfortável. Hoje percebo este trabalho como um elo entre a união de corpos em Ponto Comum – algo antes explorado em Estar a Par – e a replicação de vários em O Corpo Nunca Existe em Si Mesmo e a sua primeira variante.
Confluência: O Corpo Nunca Existe em Si Mesmo
Tales Frey, O Corpo Nunca Existe em Si Mesmo. Performance realizada na cidade de São Paulo-SP, Brasil. Outubro de 2018. Fotografia de Carol Vidal
Com inegável referência à ação Persistência Ilusória – Um Inventário Monocromático, a base processual para a criação da ação O Corpo Nunca Existe em Si Mesmo é uma ideia armazenada durante o processo da performance Finitas Contagens para Infinitas Variações e não utilizada para a mesma, sendo somente nesse caso trazida à tona. O título é oriundo da seguinte reflexão da autora Helena Katz para iniciar o seu artigo “Por uma Teoria Crítica do Corpo”:
Um corpo nunca existe em si mesmo, nem quando está nu. Corpo é sempre um estado provisório da coleção de informações que o constitui como corpo. Esse estado vincula-se aos acordos que vão sendo estabelecidos com os ambientes em que vive. […] quando o corpo muda, tudo já foi transformado. [6]
Em O Corpo Nunca Existe em Si Mesmo exponho corpos diversificados desprovidos de suas identidades sob adornos específicos (tutus de bailarina e zentais pretos) e transfigurados em imagens monocromáticas num espaço de cor oposta. Embora o procedimento seja escultural, posso dizer que, apesar de circunscrever como uma performance, uma expressão também possível para compreender este trabalho é a dança. Trata-se de uma prática coreográfica o programa/roteiro que exprime a ação. Não há ensaios prévios e as(os) performers convidadas(os) para ativarem a ação recebem instruções simples: todas/todos devem executar poses de dois a três minutos cada durante duas horas, sendo que o intervalo de tempo entre uma pose e outra não pode ter mais do que dois ou três segundos. O domínio desse tempo é muito particular e, portanto, as poses não são trocadas sempre ao mesmo tempo.
Enquanto os zentais retiram as identidades das e dos performers, as saias enormes de filó ampliam as suas corporeidades, acrescentando às formas humanas certas qualidades que, sem tais indumentos, não existiriam, ou seja, não haveria a sensação de expansão dos seus corpos capaz de produzir um efeito ilusório que, na psicologia, é nomeado por “confluência” [7]. Diferente de Estar a Par e Ponto Comum – ações em que dois corpos são unidos e, com isso, tolhem a liberdade de cada corpo, produzindo uma ideia contrária da confluência: o “contraste” – em O Corpo Nunca Existe em Si Mesmo, embora padronizados, todos corpos estão livres em suas composições de cor única, o que os direciona à tal ilusão de que há um possível aumento de suas extensões corpóreas, fundindo corpo e roupa mentalmente em uma única unidade com o espaço.
Tales Frey, desenho/estudo processual para a performance O Corpo Nunca Existe em Si Mesmo, 2018
Indicando um andamento musical aleatório, ao iniciar a ação, um metrônomo analógico é acionado para permanecer em um determinado compasso até que o aparelho deixe de emitir a sua hipnótica sonoridade e marque o fim de uma primeira seção da performance. Então, o metrônomo é acionado mais uma vez, embora com um novo compasso, ou seja, com o número de batidas por minuto diferente da primeira seção e, sucessivamente, ao terminar cada emissão sonora, até que se completem as duas horas de ação, o aparelho é sempre ativado com um novo compasso, marcando tanto a cadência para o tempo das poses dos performers quanto o tempo de perseverança e maneira de estar da audiência. Sutilmente, por influência do ritmo do som, que é alterado algumas vezes, tudo é decomposto, inclusive o autocontrole de quem ativa a ação.
Man Ray, Objeto a Ser Destruído, 1923
O objeto utilizado para emissão sonora acaba por fazer uma alusão à escultura surrealista Objeto a Ser Destruído (1923), de Man Ray, que, assim como em O Corpo Nunca Existe em Si Mesmo, propõe um período ritmado de observação da obra, estruturando a fantasia inevitavelmente condicionada à marcação do tempo. O encontro incitado pela performance, portanto, assim como pela obra de Man Ray, “é a confluência de dois arcos temporais que, ao mesmo tempo que têm um caráter narrativo, estão (ao contrário da ficção tradicional) relacionados a efeitos imprevisíveis e causas desconhecidas de antemão” [8].
Uma Estratégia Política: Conjunto Sensível
Tales Frey, Conjunto Sensível, 2018. Indumento interativo, 100 x 100 cm
Logo após a concretização da ação Ponto Comum, em 2017, eu tive uma compreensão súbita de que poderia realizar o meu aniversário seguinte (de junho de 2018) com uma resolução semelhante a esse projeto, criando um indumento para ser vestido por oito pessoas: a minha mãe, o meu pai, as minhas duas irmãs e os meus três sobrinhos. Esta veste teria uma área maior comum a todas(os) e oito segmentos menores que destacariam apenas um membro de cada uma das pessoas (um braço de uma, uma perna de outra e a cabeça de outra), tornando um único bloco plural de corpos – com alguns membros em realce – em um singular corpo não humano. Depois, como acabei por não realizar a ação de aniversário dessa forma, guardei o plano para ser repensado no futuro num outro e novo projeto.
Foi então que, a partir da leitura da obra Da Miséria Simbólica: I. A Era Hiperindustrial, de Bernard Stiegler, eu resolvi “desengavetar” a ideia, modificá-la conceitualmente e simplificá-la na configuração. Pensei em conceber um saco de tecido elástico (lycra) com um zíper grande para que, no mínimo, três e, no máximo, cinco pessoas pudessem entrar no objeto, dentro do qual poderiam conviver por tempo indeterminado. Segundo Bernard Stiegler:
A política é a arte de garantir uma unidade da cidade no seu desejo de futuro comum, a sua individuação, a sua singularidade como devir-um. Ora, esse desejo supõe um futuro estético comum. Estar-junto é ser um conjunto-sensível. [9]
A partir dessa declaração, concluímos que o conceito de “conjunto-sensível” parte de uma questão fundamental do pensamento político que versa em tentar sugerir garantias de vivências harmônicas em uma unidade comum, considerando as mais variadas singularidades, atendendo as dessemelhantes subjetividades de uma sociedade e, assim, o meu projeto artístico passou a ser um objeto interativo para que diferentes pessoas pudessem ativar e não somente a minha família.
Em um momento de polarização na política no Brasil – de um lado a esquerda e do outro a direita – as coexistências entre os dois polos tornam-se impraticáveis. Hoje, usa-se frequentemente o termo “bolha” quando vamos falar dos nossos nichos seguros, onde não vivemos a opressão do oponente. Nesse sentido, criei uma forma de uma “bolha”, onde as pessoas pudessem conviver e se descobrir por meio da brincadeira, sem que soubessem se quem divide aquele mesmo espaço restrito tem ou não uma forma análoga de assimilar a realidade e de agir a partir dela.
Essa estratégia de convívio foi pela primeira vez experimentada em uma residência artística no Zsenne Art Laboratory em Bruxelas, Bélgica, em setembro de 2018 e, depois, no SESC Jundiaí, dentro de um workshop ministrado por mim em janeiro de 2019 e como ação interativa no SESC Interlagos em São Paulo, em fevereiro de 2019. O objeto foi exposto ainda na coletiva Via Aberta, com a curadoria de José Maia, no Centro Comercial Mota Galiza no Porto, Portugal, bem como na minha exposição individual realizada em Guimarães, no CAAA – Centro para os Assuntos da Arte e Arquitectura.
“Se um tropeça, todos tropeçam”: O Corpo Nunca Existe em Si Mesmo – Variante I
Tales Frey, O Corpo Nunca Existe em Si Mesmo – Variante I. Performance realizada na cidade de São Paulo-SP, Brasil. Outubro de 2018. Fotografia de Carol Vidal
O Corpo Nunca Existe em Si Mesmo – Variante I é um trabalho que expressa claramente a estratégia de convívio por meio de um conjunto inseparável de pessoas conectadas pelos pés, afirmando uma massa plural de gente “obrigada” a habitar harmonicamente um mesmo espaço singular. A solução estética pensada é uma reflexão sobre a atual conjuntura política que estamos atravessando, a qual é caracterizada pela união do fascismo com o neoliberalismo e, nesse sentido, fiz uma proposta otimista para refletir um tempo tão cruel por meio do afeto, do tato e de um convívio “forçoso” entre singularidades diversas. Uso aspas quando escrevo “obrigada” ou “forçoso”, porque a junção de pessoas não é de fato nada disso, mas sim uma tática para congregar gente, para fortalecer indivíduos por meio de uma prática que os coloque em estado de ponderação acerca dos assuntos que atravessam tal ação. Sobre o que Rousseau percebia, Vladimir Safatle nos lembra que para o autor “a máxima da política moderna é que todos permaneçam separados, que não haja linguagem comum, enunciação comum, força comum” [10], logo procuro reverter essa ideia nas minhas últimas criações para suscitar o contrário da lógica estabelecida por um Estado tirano, porque uma vez que criamos elos e nos unificamos, nós reforçamos a nossa resistência contra o regime opressor que atualmente governa o território onde vivemos.
Esse trabalho – que é um desdobramento de Estar a Par, mas que conceitualmente se afasta dessa obra – acaba por fazer ainda uma analogia aos corpos mecanizados em uma ventriloquia que espelha uma rotina alienante, afinal, visualmente a performance consiste em uma marcha de pessoas que se conectam por artefatos idênticos apesar de todas as diferenças existentes entre elas. O sentido da obra obviamente pode ser ampliado, ganhando sentidos distintos de acordo com os contextos de apresentação. Narro, então, a primeira apresentação feita.
Mais ou menos às onze e cinquenta da manhã do dia vinte e um de outubro de dois mil e dezoito, a temperatura estava amena em São Paulo. Nem quente nem frio: agradável. Caminhávamos da avenida Brigadeiro Luiz Antônio rumo ao SESC Avenida Paulista, onde apresentaríamos a performance O Corpo Nunca Existe em Si Mesmo – Variante I. Apesar da temperatura agradável, o clima estava bem tenso.
Aos domingos, a avenida Paulista é fechada e, então, há transeuntes aos montes indo e vindo. Uns de patins. Uns de skate. Uns parados, observando tudo isso. Uns caminhando com as suas próprias pernas, sem próteses e nem rodas. Uns caminham em cadeiras de rodas. Muitos de bicicleta. E foi do alto de uma bicicleta que um homem com aparência de mais de cinquenta anos e menos de sessenta falava aos quatro ventos o seguinte: “Bolsonaro vai liberar as armas e eu vou matar uns cinco por dia.” Falou logo atrás de mim. Depois repetiu atrás de outra pessoa. E de outra. E de mais outra. Mais outra. Repetia sem parar até sumir na multidão. A avenida Paulista estava tomada por pessoas vestidas em cores da bandeira nacional; o verde-e-amarelo imperava ali. Alguns tons azuis apareciam no meio daquilo tudo. Estava ocorrendo uma manifestação pró-Bolsonaro. Estávamos justamente vivendo o final da esperança, pois dali uma semana aconteceria a votação decisiva das eleições presidenciais do Brasil. Segundo turno: Fernando Haddad X Jair Bolsonaro. A avenida se transformou num show de horrores. Pessoas cantando “Pra Não Dizer que Não Falei das Flores”, de Geraldo Vandré, simulando armas de fogo com as mãos. Incoerência absoluta. O ódio disfarçado de patriotismo. O fanatismo impedindo a percepção de um violento projeto fascista em ascensão. Muita incoerência mesmo. Bem, e completando a incoerência, foi justamente sobre uma faixa vermelha que delimita o espaço destinado às bicicletas, a ciclofaixa criada na gestão do Haddad na prefeitura de São Paulo, que o homem com mais de cinquenta e menos de sessenta falava alto a tal frase: “Bolsonaro vai liberar as armas e eu vou matar uns cinco por dia.” Na performance, éramos justamente cinco: eu, a minha irmã Paola Frey, a minha sobrinha Fernanda de Moraes, a Lyz Parayzo e o Rafael Holland. Naquele lugar onde a frase foi proferida, nós éramos apenas três ainda, pois a Lyz e o Rafael nos esperavam no camarim do SESC.
Algum tempo depois, iniciada a ação – que não aconteceu na instituição, mas sim na rua –, nossos pés estavam conectados pelos sapatos de couro com solado de madeira. Começamos sem jeito, não sabendo como dar passos em sequência, sem muita harmonia, ou melhor, sem quase nenhuma. Aos poucos e em poucos minutos, compreendemos a nossa diferença e os passos foram se ajustando e sendo adaptados conforme as necessidades. Foi a primeira experiência e não treinamos nada anteriormente. Entramos em acordo num primeiro contato e essa era a ideia mesmo; não poderia haver ensaio para essa experiência. Viramos um conjunto. Em pouco tempo, éramos um. Da caminhada cheia de dificuldades, unidos, nós conseguimos andar com calma, formando um bloco. Depois, em massa, andamos rapidamente, depois corremos como quem faz cooper. Para algumas pessoas que nos viam, éramos semelhantes a soldados em treinamento devido à sincronia forçosa dos nossos passos. Para quem nem percebia nossos pés aprisionados uns aos outros, aquilo parecia um condicionamento físico. Parecíamos bélicos de tão padronizados em nossos movimentos exageradamente sincronizados. Uma moça compreendeu: “se um tropeça, todos tropeçam”. Ela assimilava assim a simplicidade da ação, mas também parecia estar empregando a frase para criar uma metáfora de algo maior relacionado à política, e tinha intuito de proliferar a sua ideia para que outras pessoas ouvissem. Outra mulher que passava ao nosso lado queria fazer fotos e pediu para que andássemos mais devagar. Um homem perguntou sorrindo: “o que estão fazendo?”, respondi: “passeando”. Havia mesmo muita gente simplesmente passeando na avenida e que não se integrava à manifestação da extrema-direita e parte da direita do Brasil. O trabalho não foi proposto como um afrontamento à marcha pró-Bolsonaro (evento que eu jamais pertenceria), mas foi assim interpretado por muita gente adepta do evento que nos questionava com ódio sobre o significado da performance. Uma mulher trajada em verde-amarelo nos questionou com aversão: “o que quer dizer isso?”. Respondi: “há muitos significados aqui”. E completei: “como você interpreta isso tudo?”. Ainda com certa cólera, ela perguntou, ao invés de me responder: “qual a mensagem disso?”. Percebendo o quanto ela estava vidrada em seus prováveis ideais fascistas, seguimos sem respondê-la. Pensei que não deveria tentar mastigar nenhum raciocínio para ela. Para além dos discursos carregados de antipatia, algo óbvio nesse contexto, teve gente que interagiu com muito amor e humor. Teve gente que nem sequer percebeu que estávamos conectados pelos pés. Gente que desdenhou. Gente que sorriu sem graça. Gente que gargalhou, admirando. Caminhamos em harmonia para não tropeçarmos apesar do caminho turbulento que já prevíamos encontrar pela frente. Embora prevíssemos um retrocesso no cenário político do Brasil, ainda havia alguma esperança, porque a vitória do inimigo do povo não estava ainda concretizada.
Salto Conceitual: Il Faut Souffrir pour Être Belle
Tales Frey, frame de Il Faut Souffrir pour Être Belle, 2018. Videoperformance, 2’03’’
Ao vivo, a ação de me conservar sobre dois pregos grandes apontados para os meus calcanhares pelo tempo que eu conseguisse seria um trabalho extremamente minimalista de performance para ocorrer em uma galeria branca de arte. Foi assim que pensei em realizar esse projeto, em 2016, quando estava raciocinando sobre Estar a Par.
Depois, em um desenho que fiz em um caderno de anotação no tal ano, idealizei também um outro objeto, consistindo num sapato conceitual cuja sola seria concebida em madeira, de onde sairiam pregos de tamanhos variados com suas cabeças encostadas no solado; logo, as pontas estariam voltadas para cima. Queria propor uma alusão ao modelo de salto alto conhecido por “Anabela”, e queria tornar material um objeto que pudesse ser exposto autonomamente. Até então, eu tinha duas ideias para dois trabalhos distintos com a mesma premissa, sendo um uma performance ao vivo e o outro, um objeto.
Em sequência, pensei em realizar a ação de me equilibrar sobre dois pregos para dar origem a uma fotografia da ação, mas deduzi, durante a residência que fiz no espaço Zsenne Art Laboratory, que um vídeo poderia traduzir melhor a tensão do ato. Foi assim que realizei um vídeo fragmentado em três partes, cada qual apresentando uma tentativa de sustentação do meu corpo em equilíbrio sobre dois pregos. O título foi dado quando uma amiga, ao ver os vídeos processuais do trabalho que eu lhe mostrava, contou que existia uma expressão em francês muito comum que relacionava beleza à dor, “Il Faut Souffrir pour Être Belle”, exatamente o que o trabalho representava.
Em minha tese de doutorado, Performance e Ritualização: Moda e Religiosidade em Registros Corporais, desenvolvi nove proposições estéticas para refletir sobre a mobilização do corpo em práticas performativas e ritualísticas que se articulassem de alguma forma com a moda e com a religiosidade, e creio que Il Faut Souffrir pour Être Belle tenha sido um “pensamento visual” surgido em decorrência dessa pesquisa feita anteriormente. Inclusive, analisando a dor e a beleza física sob um ponto de vista cristão, a autora Beatriz Ferreira Pires – a quem recorri inúmeras vezes durante a escrita da minha tese – indaga se a moda e sua relação com a dor e o desconforto físico não estaria justamente ligada ao fato de a religião exigir um corpo dolente e sofredor em detrimento de um corpo repleto de culpa por ser belo. [11]
Inevitavelmente, o mito de Aquiles é incorporado não apenas pelo signo dos calcanhares como pontos frágeis do corpo sujeitado à ação, mas também pela apresentação de um corpo dito masculino submetido a um procedimento atribuído ao taxado por feminino numa sociedade que ainda renega o que não é binário e cisheteronormativo. Assim, o corpo assoalhado – que consiste em um par de pernas – é sublinhado como vulnerável por relacionar pelos corporais à sugestão de um adorno não lido como masculino, embora o salto alto tenha sido usado por indivíduos de ambos os sexos no século XVII e seja apenas um objeto, o que não o aprisiona ao pertencimento de um único gênero.
NOTAS
[1] LEPECKI, André. Exaurir a Dança: Performance e a Política do Movimento. São Paulo: Annablume, 2017, p. 22.
[2] CANTON, Katia. Tempo e Memória. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. 22.
[3] No dia 01 de março de 2017, o artista português Silvestre Pestana fez as seguintes observações em uma publicação na sua página pessoal do Facebook: “Finitas Contagens para Infinitas Variações”, 2017, de Tales Frey, é uma performance duracional que remete, num primeiro momento, para uma releitura de “Pose Work for Plints” (1971), de Bruce McLean. No entanto, reconhecemos nesta obra performática de Tales Frey uma dinâmica de ultrapassagem à tendência conservadora da celebração do Remake. Quanto a nós, esta revisitação perfomática, distanciada no tempo e actualizada pelo digital, mais se enquadra numa tendência geral a que chamaremos, de forma genérica, a “PERFORMATIVIDADE GIF”. Nesse sentido, consideramos como auxiliares de leitura os seguintes eixos referenciais: a) efeito zootrópico, > do grego ζωή (zoe = vida) + τρόπος (tropos = giro, roda); b) > a captura fotográfica das silhuetas extensivas aos suportes de exibição; c) > o exercício performático que insistentemente amalgama o registo dos loopers sonoros através da contínua obliteração do significado.
[4] Ver mais detalhes em: <http://curatorsintl.org/special-projects/do-it>. Consulta realizada em 12 de dezembro de 2018.
[5] LEHMANN, Hans-Thies. Teatro Pós-Dramático. Lisboa: Orfeu Negro, 2018, p. 311.
[6] KATZ, Helena. “Por uma Teoria Crítica do Corpo”. In: OLIVEIRA, Ana Claudia de; CASTILHO, Kathia (orgs.). Corpo e Moda: Por uma Compreensão do Contemporâneo. Barueri, SP: Estação das Letras e Cores Editora, 2008, p. 69.
[7] FLUGEL, J. C. A Psicologia das Roupas. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1966, p 28.
[8] KRAUSS, Rosalind E. Caminhos da Escultura Moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 146.
[9] STIEGLER, Bernard. Da Miséria Simbólica: I. A Era Hiperindustrial. Orfeu Negro: Lisboa, 2018, p. 28.
[10] SAFATLE, Vladimir. Um Dia, Esta Luta Iria Acontecer. São Paulo: N-1, 2018, p. 05.
[11] PIRES, Beatriz Ferreira. O Corpo Como Suporte da Arte: Piercing, Implante, Escarificação, Tatuagem. São Paulo: Editora Senac, 2005, p. 134.