Tales Frey

Letícia Maia: “Carne Doce” (2021)

 

 

ALGUMAS PALAVRAS SOBRE ELA

Quando falamos em performance, nós poderíamos assimilar alguns movimentos, conceitos, estratégias e, também, referenciais de artistas situados numa organização muito instituída. Imediatamente, poderíamos suscitar na nossa memória a pluralidade dos discursos e das práticas criativas relacionadas a essa expressão, porque é quase imediato que nos direcionemos para os movimentos com a pintura gestual (mais conhecida como action painting), para as estratégias anti-arte, para a body art e para a exploração dos limites do corpo, porque essas são alusões indissociáveis da arte da performance. Mas há um exercício a fazermos para não assimilarmos de modo tão imediato o que está circunscrito nessa linguagem artística.

É necessário desconstruirmos as ultrapassadas historiografias tão centradas em narrativas masculinistas extremamente restritas a um ponto de vista hegemônico localizado na cultura ocidental, que insiste em derrapar em seus delirantes vícios coloniais, racializantes, capitalistas e falocêntricos.

Indubitavelmente, Letícia Maia tem a performance como base para as suas criações, mas não se limita ao frisson do ao vivo. E ela traz em seu repertório artístico uma historiografia distinta daquelas ortodoxas e inflexíveis, onde podemos notar alusões mais coerentes com a sua própria existência, onde o seu corpo (sua carne) é apresentado com clareza como um estado provisório de uma complexa coleção de informações do ambiente em que se insere. Ela evidencia como o seu modo de fazer arte é o de tentar ouvir o efeito das forças do presente no seu próprio corpo; ela se esforça para interpretar as causas dessas forças e o estado que tais forças promovem no seu corpo. Vemos isso – sem grandes dificuldades – no modo como a artista denuncia abusos de poder com suficiente coragem para ridicularizar os papeis rigidamente rotulados para serem cumpridos.

Através das proposições sarcásticas e decisivamente subversivas de Letícia Maia, nós podemos reconhecer facilmente aquilo que ela ridiculariza ao expõr de modo extrapolado em soluções ora impregnadas de uma estética kitsch, ora completamente singela. Ela recorre ao repertório visual da nossa sociedade de consumo para comprovar e delatar o que é invocado na palavra “mulher” por um meio cisheteronormativo branco, o qual infantiliza (ao mesmo tempo que sexualiza) essa mulher reduzida a uma categoria genérica, construída por padrões impostos, que conferem modelos fabris de mulheres belas, sonhadoras, delicadas, frágeis, sensíveis, donas de casa, românticas e dóceis.

A manipulação de alguns dos ícones centrais do imaginário visual e simbólico da nossa cultura ocidental resulta em composições com caráter bem-humorado, sendo criações irônicas e satíricas de uma só vez, sérias e profundas ao mesmo tempo, onde a subversão surge insistentemente como denúncia dos abusos de poder, identificando suas artimanhas para que possamos construir futuros alternativos.

 

Tales Frey

Curador

 

OBRAS

1) Letícia Maia, Sem título, 2021. Instalação c/ caramelo, 250 cm;

2) Letícia Maia, Sobre a dinâmica da obediência _ caderno de exercícios, 2021. Aquarela, grafite e acrílica sobre papel, 21 x 29,7 cm cada;

3) Letícia Maia, Sobre a dinâmica da obediência, 2021. Vídeo, 14’23”;

4) Letícia Maia, D Ó C I L _ bala, doce brasileiro, 2020. Objeto performativo, 13 x 27 x 4,5 cm;

5) Letícia Maia, D Ó C I L _ bala, doce brasileiro, 2020. Videoperformance, 26’21’’ cada;

6) Letícia Maia, Observatório de performance ou eu sou um meme, 2021. Videoprojeção, 15’;

7) Letícia Maia, Bem menininha _ partitura I, 2021. Objeto, 89 x 60 cm aprox.;

8) Letícia Maia, Bem menininha_ partitura I, 2021. Fotografias, 7 x 7 cm cada.

 

Detalhes de algumas obras mostradas na exposição Carne Doce na Sput&Nik the Window. Setembro e novembro de 2021, Porto, Portugal

 

Programa Paralelo da Exposição Carne Doce

15 de outubro de 2021, às 17h30 | Conversa entre Letícia Maia e Tales Frey

13 de novembro de 2021, às 20h30 | Performance Sobre a Dinâmica da Obediência

 

Ficha Técnica

Letícia Maia: Carne Doce | Curadoria: Tales Frey | Montagem: Ivan Borges | Sput&Nik the Window | 25 de setembro a 13 de novembro de 2021